terça-feira, abril 05, 2011

ARNALDO JABOR - Entre a piedade e o medo


Entre a piedade e o medo 
ARNALDO JABOR

O GLOBO - 05/04/11


Há a miséria dócil e a miséria violenta 

Outro dia, atravessei dois eventos das ruas brasileiras: a piedade e o medo. Um carro encostou a meu lado e o motorista me apontou gentilmente o pneu de trás, que estaria furado. Se eu saltasse, estaria sob um revólver - percebi e me arranquei. Depois do terror, a pena. Mais adiante, uma mendiga me enviou seu filhinho magro e sujo em busca de esmola.
Eu preferia que ele não tivesse vindo. Se ao menos ele estivesse sozinho, seria suportável; devia ter uns 12 anos e no colo carregava um irmãozinho. Ou seja, um menino miserável de 12 anos leva o outro como uma triste isca para ganhar uma esmola. Na calçada, a mãe observava o efeito da mise-en-scène, esperando o lucro dos tostões. Era como uma exibição de cinema ou peça de teatro. O menino maior se comportou como um bom ator - sua voz foi treinada com um tremolo de desespero, e ele olhou bem no fundo de meus olhos, que tentavam evitá-lo. Foi um sucesso: fui tomado de funda emoção, coisa rara, porque tenho me esforçado para ser bem frio, nesses tempos duros. Mas uma criança carregando custosamente outra (o frágil protegendo o frágil) foi irresistível. Quase chorei. O menino encostou na janela do meu carro, esperando a esmola. Por alguns segundos, fui grato ao menino, pois me deu a boa fortuna de uma emoção humanitária. Senti-me feliz e consolado por ser tão "bondoso", um sujeito sensível à dor dos outros. Meu primeiro impulso foi dar um dinheirão ao menino; mas me controlei para não ceder a uma misericórdia barata. Dei uma esmola de "mercado", sem olhar para o menino, que, no entanto, me olhava sem parar. A mãe também me olhava de longe. Por que essa divergência de olhares? A riqueza não olha a miséria, mas a miséria olha a riqueza. Não olho para não sentir culpa ou para não ferir meu universo estético em que a miséria é um fator desarmônico. A miséria não é plástica. A miséria nos lembra que a desgraça existe e, portanto, a morte também.
Assim que dou o dinheiro ao menino, sou tomado por um ódio súbito contra o estado das coisas, um tremor meio histérico contra a situação brasileira, contra os políticos, contra os ricos (os mais ricos que eu...). Acelerando o carro, sinto que a indignação me enobrece e me faz atacar vagos personagens que compõem a feia alegoria do mal, uma panóplia de latifundiários, milionários, carrascos egoístas, políticos feudais. Aos poucos, me acalmo e saio lucrando com a esmola, pois cumpri meu dever e me sinto legal, pois paguei um pedágio aos pobres por ter carro, comida e casa. A caridade me faz mais bem do que ao garoto. A miséria mantém o mundo funcionando, apesar de sujar a paisagem.
Depois disso, ainda traumatizado pelo medo do quase assalto, imagino o contrário: e se um cara maior, forte e bruto me metesse um revólver na cara, pela janela? Primeiro, o assalto inverteria a posição do caridoso sujeito que eu me considero, e passaria a ser a vítima e não mais o esmoler. A pobre pessoa seria eu e teria de soltar a grana para não morrer.
O assalto é a esmola ao contrário; você recebe a graça de viver, se for humilde como os pobres. O assaltante é que dá a esmola. Além disso, o assalto desagrega nosso universo social. A pobreza perde a face milenar de doçura e submissão e mostra os dentes da vingança. Há um sabor de sacrilégio no assalto. Um travo, um arrière gôut meio "revolucionário". O assalto não te exclui; ele te inclui; você também é culpado de ter coisas e não apenas aqueles ricos que você desprezava. Você é um deles, agora. No assalto você é vítima e culpado. Pior ainda se você for amante dos "pobres e oprimidos", um comunista talvez. Nada mais triste que um comunista assaltado...
No assalto, se inicia um processo de incriminação em que você é peça de um complexo micro-macro de injustiças que se inicia no capitalismo de Wall Street e acaba ali no teu relógio que ele arrancou. Retraçando o mapa, descobre-se que o teu Rolex foi comprado com o dinheiro que teu pai deixou, herança da fazenda que teu avô pagou com dinheiro público em nome de um laranja e depois vendeu com preço subdeclarado; isso te inclui numa estirpe de malandros culpados pela desigualdade social...
Não há remissão no assalto. Alem de te levar a grana, a culpa é tua. Com o fim da caridade todos ficam suspeitos, todos incluídos no crime. Ficam visíveis relações finíssimas: no esgar da cara de um burguês nordestino, se vê a seca desenhada como uma tatuagem; na barriga de um político ou num bigode pintado se percebem anos de corrupção e crueldade. O fim da caridade até é útil, porque acaba o mundo do escândalo farisaico e começa a bruta verdade da violência. E através dos olhos furiosos dos marginais, passamos a ver a cara real do Brasil de hoje.
Mas a miséria armada nos faz esquecer a miséria indefesa. Com a onda de violência, estamos perdendo a compaixão pelos pobres. E como ninguém sabe resolver o drama da miséria, criamos um vago rancor contra ela, um certo tédio, porque ela não some, teima em reaparecer. Houve uma época em que a miséria fazia mais sucesso, até como tema para arte e literatura. A miséria já deu lucro politico. No Brasil, miséria é uma indústria. Quanto lucro uma igreja de charlatães tem com os dízimos? Lamentar a miséria traz votos populistas.
Nos sonhos "revolucionários" dos pequenos burgueses como eu, a miséria era uma bandeira. Sofríamos com ela - a miséria dos outros era nosso problema "existencial". Hoje, esvaiu-se a "revolução" imaginária; isso gerou um desalento que aos poucos deu lugar ao cinismo, quase um alívio feliz. Mas a miséria é a ponta de um iceberg sujo e poluído no Brasil. Nós fazemos parte dela. Não existe um mundo limpo e outro sujo. Um infecciona o outro. A burocracia é miséria, nossa corrupção é miséria, a estupidez política é miséria.
A miséria não está nas periferias e favelas - está no centro da vida brasileira. Somos uns miseráveis cercados de miseráveis por todos os lados. 

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