quinta-feira, março 31, 2011

HÉLIO SCHWARTSMAN

Combatendo metáforas

HÉLIO SCHWARTSMAN
FOLHA DE SÃO PAULO ONLINE

Muitas vezes assino embaixo do que a procuradora Luiza Nagib Eluf escreve. O artigo"Não há democracia com burca" publicado LEIA AQUI no último domingo, é uma exceção. Até concordo com algumas das teses centrais da autora. Como ela, acho que democracia e direitos humanos devem vir no mesmo pacote e, como ela, não menosprezo o risco de as "revoluções democráticas" árabes darem lugar, senão a regimes teocráticos, a Estados com pendores mais fortemente religiosos do que eu gostaria. Mas receio que ela esteja combatendo metáforas em vez de problemas reais e que ela avance o sinal quando proclama uma incompatibilidade essencial entre democracia e burca. O mundo é em geral um lugar mais complexo do que desejam nossos cérebros, projetados para levar a preguiça mental ao paroxismo.
Para começar, um par de correções. A burca é praticamente inexistente no Egito e nos demais países que agora enfrentam ondas de revoltas populares. Esse traje, que cobre a mulher da cabeça aos pés deixando apenas um pequeno espaço para os olhos, ocorre principalmente no Afeganistão e em algumas áreas do Paquistão e precede o advento do islã em pelo menos 400 anos. O que o alcorão (livro sagrado do islamismo) determina é que tanto as mulheres como os homens se vistam com modéstia. Na sura 24:30-31, o texto é um pouco mais explícito e manda que elas usem "khumar" (echarpes) sobre os seios. Na 35:58-59, sugere que vistam "jalabib" (mantos) quando saírem, a fim de que não sejam incomodadas. É a partir dessas passagens e de alguns "ahadith" (narrativas, a coleção de ditos e feitos do profeta), que não trazem instruções de moda mais detalhadas, que diferentes escolas de interpretação islâmica e diferentes tradições culturais desenvolveram várias modalidades de "hijab" (véu), "niqab" (máscara), "chador" (manto).
Observação parecida vale para a mutilação genital a que Nagib faz referência no artigo. Essa é uma prática comum no norte da África e que nada tem a ver com o islamismo. Ela é, com graus variáveis de empenho, combatida pela maioria dos governos locais e boa parte das autoridades religiosas. Ninguém precisa me convencer de que a religião responde por um monte de coisas erradas, mas não é a única vilã do planeta. Não precisamos atribuir-lhe pecados que não são seus.
Voltando à discussão principal, admitamos, como requer o princípio de caridade, que Nagib tenha usado burca como metáfora para toda essa profusão de véus. Embora o islamismo tenha surgido no século 7º como uma religião prafrentex, que reconhecia às mulheres direitos que lhes eram negados por outras fés, como o divórcio, ele parou no tempo e representa hoje uma força que, de modo geral, as oprime. Um bom indicador disso está na própria ideia de que elas não podem se mostrar descobertas a outros.
A situação, entretanto, é mais complicada do parece à primeira vista. A partir do mesmo substrato religioso, a Arábia Saudita proíbe as mulheres até de dirigir carros e viajar desacompanhadas enquanto o também arquiconservador Paquistão se conta entre as primeiras nações a ter sido governada por uma mulher --Benazir Bhutto, nos anos 80. Note-se que fenômeno semelhante também ocorre no Ocidente, onde a mesma matriz cristã produziu tanto uma Irlanda, onde o aborto é ilegal, como uma Holanda, onde quase tudo é permitido.
No caso específico do véu, a variabilidade também é a regra. Tanto na Arábia Saudita como no Irã ele é exigido por lei, e ambos os países são ditaduras teocráticas. Ainda assim, a situação das mulheres no Irã, onde elas têm acesso a empregos e universidades, é incomensuravelmente melhor. Já na Turquia e na Tunísia (pré-revolucionária), em nome da laicidade do Estado, os "hujub" são proibidos em universidades e prédios públicos.
Acabo de voltar da Turquia, onde a polêmica do véu é das mais candentes e permite explorar os vários aspectos da questão. Nominalmente secular, o Estado turco moderno vinha até os anos 2000 sendo dirigido por uma elite que sempre viu os religiosos com grande desconfiança. A partir dos anos 80, à medida que mais e mais mulheres que se cobriam passaram a entrar na universidade, a vestimenta foi sendo progressivamente banida. No início da década, contudo, o AKP, partido conservador islâmico, venceu as eleições e estabeleceu um governo. Entre as reformas que pretendeu introduzir, estava uma lei que permitia às mulheres entrar nas escolas vestidas com o véu, se assim desejassem. Rapidamente, a corte constitucional do país, que, como o Exército, é dominada pela elite secularista, declarou que o diploma contrariava o princípio da laicidade e a norma proposta jamais pôde vigorar.
A controvérsia, contudo, continua. Hoje, até mesmo alguns setores do feminismo secular apoiam a reivindicação das religiosas de ter o direito de escolha. Uma coisa é a mulher afegã que veste a burca porque seus parentes a obrigam e outra muito diferente é a aluna de pós-graduação turca que se embrulha num "hijab" porque deseja, mais ou menos da mesma maneira que muitas ocidentais ostentam um crucifixo. Se nos fosse dado fazer uma espécie de censo na totalidade do mundo islâmico, acho que encontraríamos mais casos de véu imposto por vontades alheias do que por decisão soberana. Mas essa não é uma questão censitária. O fato de haver mesmo que um pequeno punhado de mulheres dispostas a seguir as tradições religiosas sem imposições externas (ou, pelo menos, sem mais imposições externas do que aquelas normalmente estabelecidas pela cultura) já justifica seu direito de fazê-lo. "Abusus non tollit usum" (o abuso não tolhe o uso).
Lamentavelmente, porém, o véu se tornou mais uma trincheira nas guerras culturais. Enquanto boa parte dos países ocidentais e alguns Estados de maioria muçulmana seculares se apressam em bani-lo, governos islâmicos o vão impondo ou pelo menos encorajando (como é o caso do Hamas, na Palestina). De minha parte, até aprecio uma batalhazinha cultural. Elas costumam oferecer boas oportunidades de reflexão e debate. Eu, por exemplo, defendo com ardor a retirada de símbolos religiosos que o Estado coloque em espaços públicos, como é o caso dos crucifixos em nossos tribunais. Mas eu paro no poder público. Não creio que seja legítimo forçar um cidadão a abrir mão de utilizar adereços religiosos. Trata-se, afinal, da mais mais elementar das liberdades civis, que é a de possuir uma individualidade e exprimi-la pacificamente.
No fundo, o que está em jogo aqui é se o Estado tem prevalência sobre o indivíduo ou vice-versa. Sem prejuízo de algumas obrigações tributárias e normas de boa convivência devidas por cidadãos, acredito que o Estado contemporâneo existe para servir ao indivíduo e não o contrário. Como a maioria dos analistas, ignoro as razões de fundo que deflagraram a onda de rebeliões no Oriente Médio, mas não me surpreenderia ao descobrir que a descoberta de uma noção de individualidade mais ou menos como a colocada pelo Ocidente está entre elas.

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