quarta-feira, janeiro 05, 2011

ALON FEUERWERKER

Na marca da cal
ALON FEUERWERKER
CORREIO BRAZILIENSE - 05/01/11


A herança do ex-presidente no front externo não deve ser julgada apenas pelo pênalti perdido em Teerã. Até porque Dilma pode, se quiser, pedir para voltar e bater de novo


Foi sintomático de um estado de espírito que o ex-presidente tenha se despedido do cargo com ironias sobre o estado da economia dos países ricos. A mensagem foi clara: vocês que viviam nos receitando remédios esqueceram de cuidar da própria saúde. 
Não chegou a ser grande novidade, considerada a referência que mais atrás o presidente fizera aos loiros de olhos azuis como responsáveis pela crise de 2008. 
Nossa economia andou relativamente bem no último período, quando comparada a ela mesma dos anos 1980 para cá. É a comparação razoável a fazer. Mas seria honesto reconhecer pelo menos duas coisas. 
A prosperidade brasileira assenta-se na sólida disciplina fiscal, em bom grau imposta a nós na esteira das sucessivas crises dos emergentes nos anos 1990. E parte grande da nossa blindagem na recente conturbação decorre não de qualidades, mas de um defeito: o ainda baixo volume de crédito. 
Numa crise de confiança no sistema creditício vai melhor quem está menos endividado, e portanto tem mais credibilidade para honrar as dívidas. O crédito no Brasil é escasso e caro. Isso está longe de ser bom. Bancos com a saúde excessivamente fulgurante nem sempre são notícia alvissareira para quem não é acionista de banco. 
Mas esta coluna não é sobre a crise, é sobre um possível recalque que o Brasil possa ter carregado de certas frustrações recentes. 
Quando assumiu em 2003, e por bom tempo ao longo dos dois mandatos, o presidente trabalhou para projetar o papel de ponte, de liga entre o mundo rico e o mundo pobre. A simbologia foi carimbada logo depois da posse, com visitas acopladas a Davos, o Fórum Econômico Mundial, e a Porto Alegre, o Fórum Social Mundial. 
Era a senha para um conjunto de movimentos. Desde a operação para a vaga no Conselho de Segurança da ONU até o acordo de Teerã sobre o urânio enriquecido dos aiatolás. Passou pela imensa energia investida para tentar concluir a Rodada Doha e pelo esforço para fazer do G-20 um ator relevante na elaboração de uma nova arquitetura planetária das finanças. 
A administração anterior empregou belo capital em ações que pressupunham a possibilidade de um protagonismo multipolar. Confiou na inevitabilidade do multilateralismo, personificado nas instâncias que dão forma ao conceito. Tratou de humanizar a globalização. Os resultados foram fracos. Bem fracos. 
Mas nem sempre as iniciativas inovadoras dão resultados imediatos, e é preciso dizer que o hoje ex-presidente se esforçou para colocar o Brasil num papel mais compatível com nosso tamanho em território, economia e população. 
Os críticos apontam certa falta de medida. É complicado saber qual teria sido a medida "certa". Acaba virando um debate sobre engenharia de obra feita. 
Há também ressalvas na esfera dos direitos humanos e na relação com regimes ditatoriais, mas aqui seria igualmente necessário lembrar que não há, nem nunca houve, país que guiasse suas relações com outros principalmente por esse critério. 
Problema mesmo foi a trapalhada de Teerã. Nada havia de errado em tentar um último diálogo antes das sanções, mas ficou a impressão de a diplomacia brasileira e o presidente terem se apaixonado por si próprios e avançado o sinal sem necessidade. 
Não era apenas um possível acordo, a ser ainda submetido às grandes potências. Era o nascimento de um líder global apto a conseguir o que ninguém havia conseguido, a ter sucesso onde os demais haviam colhido apenas fracassos. Era, enfim, uma mudança radical de paradigma. 
Deu errado, e o Brasil saiu da história como o país para quem não é tão problema assim o Irã seguir na busca de um artefato nuclear para fins bélicos. E a fuga para adiante só piorou as coisas, quando o presidente foi dúbio e evasivo sobre a conveniência de uma proliferação nuclear global. 
Mas a herança de sua excelência na área externa não se resume a esse erro, assim como Zico não pode ser julgado só pelo pênalti perdido contra a França em 1986. 
Com uma vantagem agora: Dilma Rousseff pode pedir para bater novamente o pênalti e recolocar o tema no eixo do qual jamais deveria ter saído. Basta reafirmar que para o Brasil um Irã dotado da bomba é inaceitável, sem dubiedades. 
Afirmação que, por algum motivo, o antecessor não fez. 

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