domingo, maio 09, 2010

DANUZA LEÃO

"Entreatos"
DANUZA LEÃO
FOLHA DE SÃO PAULO - 09/05/10


Revendo agora, fiquei chocada e pensei que, se fosse vivo, Maquiavel seria considerado um ingênuo



OUTRO DIA revi, no Canal Brasil, o excelente documentário de João Moreira Salles "Entreatos", feito durante a campanha presidencial de 2002.
A equipe seguiu de perto o então candidato Lula, e é incrível como o tempo transforma tudo: o candidato mudou, meu senso crítico mudou, seus companheiros hoje são outros.
Foi curioso ver, no documentário, grupos de pessoas comuns que, nos intervalos dos debates, opinavam, dizendo quais os pontos altos e baixos do candidato; essas informações eram passadas por celular aos assessores diretos de Lula, que as repassavam ao candidato.
"Ele não deve dizer "precisamos fazer", deve dizer "vamos fazer", era um tipo de instrução enviada, e por aí vai. Na época fiquei abismada com o que me pareceu o auge -no bom sentido- da competência profissional. Revendo agora, fiquei chocada e pensei que, se fosse vivo, Maquiavel seria considerado um ingênuo.
Os coadjuvantes, que não eram conhecidos na época, hoje são famosos, e lá estão. Faltaram alguns, mas os que participaram são facilmente reconhecíveis do tempo do mensalão, quando a TV transmitia ao vivo a CPI. Lá estavam: o tesoureiro do PT, Silvinho Pereira, o publicitário responsável pela campanha, Duda Mendonça, preso algum tempo depois numa rinha de galos, Lulinha, filho do candidato e hoje empresário muito bem sucedido, o ex-ministro Antonio Palocci, que teve que se demitir por ter mandado abrir a conta bancária do caseiro Francenildo, o mais poderoso de todos, José Dirceu, ex-ministro da Casa Civil, denunciado como chefe do mensalão e da quadrilha, que precisou deixar o cargo e teve seus direitos cassados até 2015, e outros menos votados.
O PT ficou sem candidato e sobrou para a ex-pedetista Dilma Rousseff, que aliás virou petista em 2001.
O documentário, nove anos depois, parece o filme de uma gangue tramando um golpe; aguardamos ansiosos o "Entreatos 2", contando os lances inesquecíveis dos últimos sete anos (talvez dirigido por Coppola), e esperando que não seja preciso haver o "Entreatos 3".

PS. - Se existe algum país com a obrigação de ajudar a Grécia, é a Inglaterra. O novo primeiro-ministro poderia fazer bonito e dar um empurrão para que sejam devolvidos os mármores saqueados do Partenon pelo então embaixador britânico Lord Elgin.
"Os mármores de Elgin", como são chamados, estão expostos na sala mais visitada do museu Britânico, em Londres, e são mais do que a metade das preciosidades encontradas no templo grego.
Em 2009, quando o museu da Acrópole foi inaugurado, em Atenas, todo o mundo diplomático esteve presente, com exceção do embaixador inglês, e funcionários da embaixada. Nos anos 80, a atriz grega Melina Mercouri, na época ministra da Cultura, fez uma campanha pelo mundo implorando à Inglaterra que devolvesse as estátuas pilhadas para a ocasião dos Jogos Olímpicos de 2004, mas em vão.
O museu Britânico não admite, sequer, essa possibilidade; fala, no máximo, de um empréstimo. A Inglaterra não perde a mania de levar "lembrancinhas" dos países pelos quais passa.

MÃE GOSTOSA

JOSÉ SIMÃO

Dia das Mães! Dá um Viagra pro pai!
JOSÉ SIMÃO
FOLHA DE SÃO PAULO - 09/05/10

O filho do século é o Maluf, que inaugurou um complexo viário com o nome da mãe

BUEMBA! BUEMBA! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Direto do País da Piada Pronta! Hoje é Dia das Mães. O Dia delas. Dia da Jocasta! E eu tô com pena da mãe do Dunga. Rarará!
E a natureza é sábia: já imaginou se a mãe do Serra e a mãe da Dilma tivessem tido gêmeos?! E aí teríamos dois Serras com aquela cara de porteiro de necrotério. E duas Dilmas com aquela cara de pitbull com TPM. Aliás, TPM! Rarará!
E faça sua mãe feliz. Dê um Viagra pro papai! E o filho do século é o Maluf. Que inaugurou um complexo viário com o nome da mãe dele: complexo viário Dona Maria Maluf.
Mas aí é complexo de Édipo. Complexo de Édipo Dona Maria Maluf. E tem mãe sapata e pai gay, um casal moderno: ele de bobes e ela de terno. Rarará! E supermãe é aquela que quando o filho não atende, fica ligando pro celular dos amigos. Supermãe é aquela que mesmo depois de morta fica gritando lá do céu: "Não vai esquecer o agasalho!" Como no filme do Woody Allen!
E todo ano eu homenageio as duas supermães clássicas, as dramáticas: a italiana e a judia. E sabe qual a diferença entre a mãe judia e a mãe italiana? A mãe italiana grita: "Se você não comer tudo, eu TE MATO". E a mãe judia: "Se você não comer tudo, EU ME MATO". Rarará!
E a Grécia? Sabe por que a Grécia quebrou? De tanto quebrarem prato! E sabe por que eles não se entendem? Porque só falam grego!
E o vazamento no golfo do México? O site Comentando lançou uma nova versão do filme do Cameron: "AVAZAR"! Rarará! E olha a faixa que vi na rua: "Fazemos bandeira de qualquer time. Por pior que seja!".
OU VAI OU VIAGRA! Já começaram a sair os genéricos do Viagra. O Viasil: Viagra com Plasil, pra transar com a esposa sem enjoar. E um pitico de Gardenal. Pra não enlouquecer! E sabe qual o sal que entra na composição do Viagra? Salpicão! Rarará! E para o segmento GLS: Viagray. Viagra de gay é o Viagray. E o Viagrol: Viagra com fosfosol. Pra se lembrar o que fazer quando o Viagra começar a fazer efeito. E agora o que eu faço com isso? Viagrol! E no Nordeste é o Canaviagra, O Tesão do Nordeste: extrato de guaraná, gengibre, pimenta jamaica, cravo e canela.
Mas o melhor genérico pro Viagra é o milho: você coloca no umbigo e espera o pinto subir pra comer!
Dilma e Serra na ExpoZebu. Aí, quando eles chegaram, a ExpoZebu mudou de nome pra EXPO BELZEBU! E sabe o que o zebu gritou quando viu os dois? MUUUUUito feios. MUUUUUitos chatos! Rarará! Nóis sofre, mas nóis goza. Hoje só amanhã! Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

CELSO MING

Cobertura para a folia
Celso Ming
O ESTADO DE SÃO PAULO - 09/05/10 

O presidente do Banco Central Europeu (BCE), Jean-Claude Trichet, tem fama de durão, mas sabe-se lá até quando vai resistir às pressões crescentes, do mercado e dos governos, para que ordene a recompra de títulos públicos que hoje estão na carteira dos bancos.

A justificativa é a de que os grandes bancos voltaram a estancar o crédito uns aos outros porque temem que o calote soberano possa quebrá-los. E essa atitude, por sua vez, está trazendo de volta a trombose no crédito que vai paralisando a economia. As dificuldades para refinanciar os US$ 143 bilhões da dívida grega comprovam a secura do mercado de crédito.

Os números variam, mas hoje se calcula que os bancos carreguem US$ 1,3 trilhão em títulos públicos emitidos por Grécia, Espanha e Portugal.

O argumento em favor da grande operação de resgate de títulos por parte do BCE, se algum ensinamento ficou da primeira etapa dessa crise, é o de que os bancos centrais não podem ficar à espera de que a mão invisível se encarregue do ajuste. Esparramar dinheiro por meio da recompra de títulos, sem olhar muito para sua qualidade, foi a decisão correta do Federal Reserve (Fed, o banco central americano) durante a crise de 2009, que encheu seu balanço com US$ 1,3 trilhão em títulos podres e com outros US$ 300 bilhões em títulos do Tesouro dos Estados Unidos. Se assim foi e se assim se salvou a economia americana, por que o BCE não vai pelo mesmo caminho?

Uma das objeções é técnica. A partir do momento em que o BCE passasse a recomprar títulos soberanos e, em contrapartida, injetasse dinheiro na economia, estaria infringindo duas regras de ouro da política monetária. Em primeiro lugar, emitiria moeda e, assim, contribuiria para o que pudesse vir a ser um grave surto inflacionário. Em segundo lugar, daria cobertura para a irresponsabilidade fiscal dos governos da área do euro. Enfim, essa poderia ser considerada uma operação de empréstimo de última instância para desmandos orçamentários desses governos.

Esse segundo ponto merece mais análise. Boa parte desses títulos é o resultado do desrespeito das regras da União Monetária Europeia. Os governos gastaram muito além do déficit tolerado, de 3% do PIB, e se endividaram muito além do limite dos 60% do PIB, como está no Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC). Se recomprasse esses títulos, o BCE se apresentaria como financiador da folia fiscal.

Como ficou dito, o Fed fez quase a mesma coisa quando, em 2009, se comprometeu a recomprar até US$ 300 bilhões em T-Bonds e a essa operação chamou de "afrouxamento quantitativo" (quantitative easing), sob o argumento de que teria de criar demanda para os títulos americanos, para que os juros de longo prazo não ficassem tão elevados a ponto de inviabilizar a sua política monetária.

Mas o principal obstáculo a essa atitude do BCE é político. Apenas a ameaça de uma catástrofe de grandes proporções levaria os alemães a admitir que o sistema financeiro europeu fosse socorrido com uma gigantesca emissão de moeda. Em outras palavras, a situação precisaria piorar para que o BCE tivesse condições políticas para atender aos apelos de recompra de títulos que hoje estão com os bancos.

GOSTOSA

ARI CUNHA

Brasil sem saúde
ARI CUNHA

CORREIO BRAZILIENSE - 09/05/10


Lula fez o Brasil rico, possante e capaz de enfrentar todas as dificuldades. Essa é a palavra oficial do governo. O presidente Lula pensou no poder da amizade internacional, em favorecer países pobres que se tornarão compradores da nossa produção. Enviou dinheiro para muitos necessitados. Não deixa de ter comportamento humano. Ocorre que o Brasil está órfão. O melhor da vida de quem pensa é ter saúde e educação. Na capital da República falta, o que de mais necessário o povo merece. O Ministério da Saúde fez visita oficial ao Hospital de Base. Constatou que, entre nós, o rico e o pobre não têm direito ao auxílio do setor saúde e, quando o recebem, é de forma precária. O caso da vacinação é vergonhoso. Em tempos idos, começava em abril. Preparava a população para antecipar cuidados contra a chegada do frio. Aos postos de saúde dava gosto comparecer. A vacinação continua sendo obrigatória. Filas se estendem. Comum é a pessoa chegar e sentir a novidade. Pelo que se vê, os dias não são marcados por idades. E sim pelo governo, e adiados a seu gosto.


A frase que não foi pronunciada

“É possível fazer um projeto perfeito em nove meses.”
Frase pensada por toda mãe coruja como dica ao ministro Orlando Silva para cumprir o cronograma de obras para a Copa.



Liberdade
O coronel Ricardo Martins, da PM, deu entrevista como homem de comando. Mostrou que o regulamento é rígido e obedecido. Falou do espírito familiar de seus comandados. São como cidadãos comuns. Têm emoções, transtornos. No horário de trabalho são cordiais, porém dentro do regulamento disciplinar. Para desanuviar o momento, confirmou que o militar tem 26 horas de folga. A tropa está liberada para, nessa hora, prestar serviços a particulares.

Safra
Caminhões novos e possantes cruzam pistas e estradas. Começa a colheita de centenas de milhões de toneladas de grãos. Carrocerias com quatro ou mais eixos protegem a pista com a distribuição do peso. Parte do milho será vendido em leilão eletrônico. Milho e arroz vêm da terra, com toda proteção. São números de alegrar o Brasil. Aliás, o que a terra produz é em favor do Estado, que cobra mais impostos.

Maior conglomerado
A empresa de aviação comercial formada pela United e pela Continental juntou pertences e interesses. Há contrato de integração. Será a maior transportadora do mundo, exatamente numa hora em que os capitais de aplicação são reduzidos. Os Estados Unidos sofrem, mas não deixam de organizar grandes empresas no mundo.

Alô, alô!
Em tempos de eleições, poucos são os ouvidos ligados na Telebrás. O fato é que R$ 11 bi estão em jogo para reativar a banda larga no país. Overdose de valorização e a certeza do governo, em nome da ministra Erenice Guerra, de que as empresas privadas não perderão terreno.

ECA
Basta o Legislativo reconhecer. O Estatuto da Criança e do Adolescente, como está, é um estímulo ao crack e ao crime de menores. Não há punição e a meninada transgressora age livremente. Diz até para autoridades policiais que em pouco tempo estará de volta às ruas para continuar com a violência e o consumo de drogas.

Tentativa
Ainda sobre o assunto, vale o registro da importância do encontro de autoridades com a sociedade na comissão da Frente Parlamentar Mista de Combate ao Crack. O crack é uma epidemia. O ministro Temporão parte dessa ideia para traçar políticas públicas.

Injustiça
Mais uma vez a Caesb surpreende. Depois da implantação de hidrômetros, reclamações. Na Fercal, há contas que chegaram até R$ 2.400. A água não é potável. Com o texto pronto, a Caesb segue o protocolo. Justifica o valor cobrado, apontando vazamentos que não existem. Graças à Câmara Legislativa, o consumidor não tem chances na Justiça contra a Caesb.

Eleitoral
Compra de eleitores por parte de todas as esferas de governo dá vantagem financeira. Verba sai do bolso dos pagadores de impostos. Corrupção atinge forças particulares. A porta está aberta há tempos. Aprimorar o sistema é trabalho de valor para se fazer antes da apuração.

Bope
Mortes no Rio são resultado do confronto de pessoas fazendo pressão. Complexo da Maré é exemplo de que, quando julgavam um mal, não pensavam no futuro. Eram PMs em serviço. Obrigados a matar, não havia outra escolha. A força militar ali instalada enfrenta até contrabandistas, que chegam para instalar punição aos subordinados.

BRASIL S/A

A Grécia foi aqui
Antonio Machado

CORREIO BRAZILIENSE - 09/05/10

Como o Brasil de ontem, Grécia descerá ao inferno pelo que deve. A dúvida é se e como voltará


As crises, como impressões digitais, são diferentes entre pessoas e países. Igual a todos é o sofrimento que elas provocam e o senso de humilhação que as acompanham. É como faltasse chão para pisar.

Tais emoções evocadas no curso da tragédia da Grécia incomodam os europeus, assim como, pouco antes, a descoberta pelos americanos da falibilidade dos EUA e a sua dependência da China devem ter mexido com os brios da maior potência econômica e militar do planeta.

Surgida das entranhas do mercado de hipotecas dos EUA, a grande crise, que colapsou o crédito no mundo e hoje solapa a solvência das nações, não é só um evento urdido pela especulação financeira, conforme a desculpa clássica de governantes atônitos. Nem se deve apenas às travessuras do mercado desregulado. Antes fosse.

O que pode ser diagnosticado é mais fácil de curar. A banca zoou? Controle sobre os banqueiros. O crédito sumiu? O mercado parou? É só chamar o Estado, como se fez no Brasil em contraponto à aversão ao risco da banca nacional. Se tudo quebrou ou parece insolvente, a receita é a mesma: mais Estado na economia. A esquerda adorou.

Aqui e ali, até escreveram o epitáfio do capitalismo, que seria um zumbi, a se crer nos profetas do caos, tantas vezes foi dado como morto e tantas vezes se ergueu tal qual Lázaro ao chamado Divino.

É possível que a recessão breve no país, parte devida às ações do governo para reanimar o consumo, tenha deixado marcas profundas na percepção do presidente Lula e de Dilma Rousseff sobre a economia.

A crise chegou como uma revelação em muitas partes do mundo. Nos EUA, ela mostrou o fim de linha do processo de endividamento tipo rosca sem fim, iniciado no final da década de 1960. Na Europa, ela põe em causa o futuro do modelo de Estado de bem-estar — o remanso do desemprego e das aposentadorias regiamente remuneradas, assim como de serviços de saúde e educação impecáveis e gratuitos.

Para reflexões e temores desse quilate terem emergido, já dá para suspeitar de que essa crise é diferente. Mas para eles, os ricos. Não para nós, as ex-colônias, depois Terceiro Mundo. Hoje é o quê?

Eles olham para a Grécia e enxergam os subdesenvolvidos da década de 1980 arqueados pelo crescimento sem poupança e movido a dívida, pelos dois choques do petróleo, pelo choque dos juros dos EUA — e temem a dor da terapia que nos recomendaram. E a decadência.

O Club Med formado por Grécia, Portugal, Espanha e Itália é como a América Latina entre as décadas de 1980 e 1990 — também exaurida por deficit, dívida, Estado balofo, empresariado sem fé, políticos anões, sociedade exausta. E o FMI no cangote a serviço da banca.

Penitência é a mesma
Onde vastas partes da Europa do euro se assemelham com a América Latina do passado recente? Nas dívidas, no inchaço do aparelho de Estado e na incapacidade de a produção doméstica solver o que dela exigem os credores. Os países latinos que foram à bancarrota com alguma base industrial florescente, mesmo que de matérias-primas e bens agrícolas, ajustaram-se melhor ao tratamento prescrito.

Ele se parece com o que a União Europeia e o FMI impuseram à Grécia como condição à ajuda de 110 bilhões de euros para refinanciar as dívidas do país até 2012. Brasil e Chile seguiram a receita e superaram a crise. A Argentina continua em coma. O resto não fazia diferença.

Ou faz ou sai do euro
A compreensão do significado da ajuda à Grécia é fundamental para a sanidade dos mercados. Com ela, a Grécia rola sua dívida sem ter de ir ao mercado. A cada vencimento, o Banco Central Europeu e o FMI recebem os papéis do Tesouro grego e acrescentam uma nova dívida.

Não há, com tal esquema, como a Grécia entrar em moratória. Se for, será por decisão unilateral do governo do primeiro-ministro George Papandreou, não por pressão externa. O corte de gastos e o aumento de impostos exigidos, porém, são excessivos. Uma recessão longa já está projetada. O Congresso grego aprovou o plano. Não se sabe se o governo poderá executá-lo. A população em fúria foi às ruas para lutar pelo seu bem-estar. Vai perdê-lo de qualquer jeito. A Grécia não tem economia para bancar sua dívida nem se virar fora do euro.

Líderes da nova ordem
Aguardam-se ações assemelhadas, mas em menor valor, que permitam a Portugal, com dívidas impagáveis, e Espanha, com deficits que os investidores temem financiar, sair dos mercados enquanto a poeira da crise grega não assenta. E depois? Só há o caminho de encolher o custo do Estado, deflacionar salários e armar um forte programa de renovação industrial para a volta da fortuna. Foi o que China, Índia, Brasil e Chile fizeram. Hoje, lideram a nova ordem global.

A síndrome da cigarra
Virou chavão dizer que o mundo mudou pela crise, o que é só parte do que acontece. A ruína de Wall Street foi o sinal vermelho para a opulência sem produção e o crescimento sem poupança — dois males mitigados na China pelo seu capitalismo de Estado regado a mercado e mal entendidos no Brasil pelos doutos da economia e da política.

Ocioso é brigar pelo que vem primeiro: investimento ou poupança. Tanto faz, contanto que a produção cresça com estabilidade, o que requer que prevaleça sobre o consumo, sobretudo de governos. Esse é um debate em aberto no Brasil. Tarda fechá-lo. Dá-se como certo o início de outro ciclo de expansão no mundo puxado pela inovação. O risco é ficarmos para trás, entretidos pelo canto da cigarra.

GOSTOSA

JANIO DE FREITAS

Lula em questão
JANIO DE FREITAS
FOLHA DE SÃO PAULO - 09/05/10


Indícios de que o Brasil é usado pelo Irã multiplicam-se há bastante tempo



EXPERIENTE EM negociação com Lula, a quem o presidente francês convenceu, com uma só conversa, a comprar 36 aviões caríssimos que nenhum outro país aprovara, o governo francês tem autoridade para "temer que o presidente Lula seja enganado" no Irã, quanto ao projeto nuclear do governo Ahmadinejad. Mas não é único nessa visão: a imprensa estrangeira está farta em temores, suspeitas e até grosserias mais rombudas do que a francesa. Só aqui o comprometimento do Brasil, por decisão pessoal de Lula, com o risco Irã, está cercado de apatia.
Como princípio, a defesa, feita por Lula, de mais negociações antes de maior bloqueio punitivo ao Irã, é o que há de mais lúcido. Até como denúncia indireta da política americana de prepotência antes de tudo. Mas o avanço de Lula, sem admitir sequer ressalvas ao Irã, dá razão a questionamentos. De onde, por exemplo, extrai tanta certeza de que o projeto nuclear iraniano é todo ele pacífico, apesar da recusa a inspeções amplas? E há, ainda, a progressão dos níveis de enriquecimento do urânio.
Os indícios de que o Brasil é usado pelo Irã, na protelação de possíveis soluções para o impasse internacional, multiplicam-se há bastante tempo. Somos o país que tem a confiança do Irã para encaminhamento de soluções aventadas, e, se alguma perspectiva desponta nessa linha, logo deixamos de servir.
Uma contradição ilustrativa, nesse sentido, passou em branco por aqui nos últimos dias. Principal conselheiro de Ahmadinejad em assuntos internacionais, Ali Akbar Valayati negou com muita ênfase, na sexta-feira 30 de abril, que o Irã sequer admita negociação para receber do exterior urânio mais enriquecido, em troca de manter níveis baixos (não militares) em suas usinas. A proposta de negociação, em que o Brasil se destaca, segundo o mensageiro iraniano "demonstra intenções satânicas". Passados apenas quatro dias, Ahmadinejad disse em Nova York, segundo o site do seu gabinete, aprovar a oferta do Brasil de intermediar a proposta de troca de urânio com o exterior. É o jogo em que o Brasil é posto como um pêndulo. Se não combinado, ao menos com aceitação.
Há, porém, mais indagações sobre a atitude de Lula que a da base misteriosa, se existe, para sua insistência em que o projeto nuclear do Irã é só pacífico. São indagações sobre a relação entre os projetos iranianos e certos outros projetos, não iranianos, que não deixam de ser pacíficos, porque não têm intenções beligerantes. Mas nem por isso são civis, ou para fins civis.
"O Brasil quer para o Irã o mesmo tratamento que quer para o Brasil" - uma frase de Lula com muitos e distintos significados.
Salvação
O golpe em Honduras, no qual a atitude posterior do Brasil ainda é criticada, foi declaradamente dado "para salvar a democracia contra o projeto chavista de Zelaya". Informação atual da vice-presidente da seção espanhola de Repórteres Sem Fronteira, Malén Aznarez: no último mês e pouco, só de jornalistas foram assassinados sete.

PEDRO S. MALAN

O que temos que ver com gregos e outros?
PEDRO S. MALAN 
O Estado de S.Paulo - 09/05/10

A experiência histórica de séculos, tão bem documentada no belo livro de Rogoff e Reinhart (This Time is Different), mostra a grande frequência em que, após graves crises financeiras, as finanças públicas podem se deteriorar de maneira rápida e profunda. Os riscos associados a esta deterioração são particularmente agudos em países que já experimentavam, antes da crise, elevados ou crescentes déficits fiscais e de balanço de pagamentos; alto ou crescente estoque de dívida pública; significativa proporção desta dívida detida por estrangeiros, denominada em moeda estrangeira (ou em moeda que o país em questão não emite); elevado grau de rigidez em seu nível e estrutura de gasto público; um alto e crescente gasto com idosos e aposentados; e uma economia pouco competitiva internacionalmente.

Países que já tinham vários desses problemas antes da crise passaram a tê-los fortemente agravados pela natureza da inevitável resposta à crise. Com efeito, a necessidade de conter o pânico e o colapso da confiança nos mercados financeiros levou governos, por intermédio de seus Tesouros e bancos centrais, a uma intervenção historicamente sem precedentes, em termos de assistência de liquidez, garantias a depositantes e credores, compra de ativos dos balanços de bancos e injeções de capital em instituições financeiras e não-financeiras. As estimativas são de que os países desenvolvidos tenham assumido compromissos que, se necessário, poderiam chegar a cerca de 27% de seu PIB conjunto, nas várias formas de intervenção acima mencionadas.

Como consequência, seus déficits fiscais chegaram, na média, à faixa de 8% a 9% do PIB e o estoque de suas dívidas públicas está estimado para, na média, chegar aos 100% de seu PIB em dois anos mais. Uma expansão sem precedentes históricos em tempos de paz. No caso mais grave - o da Grécia -, o déficit público chegou a 13,6% do PIB em 2009 e sua dívida pública, a mais de 115% do PIB no ano, devendo alcançar 150% em 2014 - mesmo que a Grécia consiga reduzir seu déficit em quase 11 pontos porcentuais de seu PIB (de 13,6% para menos de 3%) em 2014. O que é altamente improvável para um país que - como vários outros, e não apenas da área do euro - já vinha seguindo uma forte e insustentável trajetória de expansionismo fiscal e que tinha - como vários outros países - muitas das características mencionadas no primeiro parágrafo deste texto.

O fato é que a questão da "crise das dívidas soberanas" estará na agenda das discussões internacionais por anos à frente. A eurozona ocupa um lugar especial por uma razão importante: os países que adotam o euro não podem esperar resolver problemas de dívida pública por meio de abruptas e não antecipadas acelerações de inflação e depreciações cambiais. Afinal, individualmente, esses países não emitem a sua própria moeda, não tendo política monetária e cambial decidida no âmbito nacional.

Esperemos que o Brasil esteja na categoria dos países que podem, mas não querem incorrer neste autoengano, porque aprenderam com as experiências - suas e de outros. Países nesta categoria sabem, ou deveriam saber, que não há alternativa que não seja evitar que a irresponsabilidade fiscal leve a dúvidas quanto à solvência de médio e de longo prazos de seus respectivos setores públicos. E, não menos importante, que é exatamente nos períodos de bonança e de euforia que se deve, precavidamente, como há muito mostraram os noruegueses, chilenos e outros, preparar o terreno para tempos mais difíceis - que sempre chegarão.

Nesse sentido, tão ou mais importante do que comemorar o décimo aniversário da Lei de Responsabilidade Fiscal é, agora, resistir às inúmeras pressões para que ela seja desrespeitada na prática e não permitir que o espírito que presidiu a sua elaboração, no final dos anos 90, seja gradualmente deixado de lado. Como já notei em outra oportunidade, construir uma reputação de comportamento fiscalmente responsável demanda muito tempo. A destruição progressiva de tal reputação pode ser realizada em muito pouco tempo.

Esse é o risco que estamos correndo. No Brasil, todos têm "muito apreço" pelo gasto público que os beneficia - e a seus eleitores. Mas este "apreço geral", que não está de forma alguma restrito aos anos eleitorais, e a voracidade com que se procura o acesso privilegiado a recursos públicos constituem o ovo da serpente de futuras crises fiscais e estão por trás das dificuldades que temos em assegurar investimentos em infraestrutura, em educação de qualidade e, em ultima análise, uma aceleração sustentada de nossa taxa de crescimento. Como vem acontecendo com países que não atentaram em tempo hábil para a importância da responsabilidade fiscal como política de longo prazo, ainda que ciclicamente ajustada.

Alguém pode perguntar: e nós com isso? Afinal, estamos em situação muito melhor do que vários países da zona do euro em termos fiscais, não temos as amarras que eles têm em termos de política monetária e cambial, estamos crescendo em matéria de consumo e investimento, atraindo capital estrangeiro, há confiança no ar. Qual é o problema? O problema no momento é a enorme complacência que existe entre nós com o agravamento de nossa situação fiscal, quando se a considera em perspectiva, incluindo todas as elevações de gastos permanentes já contratados e as expectativas de gastos por contratar. Deveríamos estar analisando com atenção os casos de crises de dívida soberana ora no foco da atenção mundial, não para derivarmos satisfação com nosso melhor desempenho relativo, mas para aprender grandes lições sobre a importância de não deixar as coisas começarem a fugir de controle nessa área. Parafraseando o grande poeta John Donne, "não me perguntes por quem os sinos dobram, eles (talvez) dobram por ti".

Mães, feliz dia!

IVAN ÂNGELO


Ouvindo vozes

REVISTA VEJA - SP

Ivan Angelo 

Que você acha da voz do Faustão? Do Marlon Brando? Da Xuxa? Do Raul Gil? Do Lula? Do Bush? Da sua voz?
A do Lula vem raspando como se a passagem fosse estreita, carro em túnel apertado.
A da Xuxa lembra personagem de desenho animado infantil.
A do Faustão é empolgada como se anunciasse algo sensacional — e não é nada disso.
A do Raul Gil sai como se ele estivesse sendo esganado.
Outras dão conforto aos ouvidos. A do William Bonner parece afinada por maestro. Na grande época do rádio, mulheres se apaixonavam por vozes, e não estamos falando de cantores. Vozes de locutores, de narradores. Homens de vozes aveludadas, como César Ladeira e Ramos de Carvalho, diziam poemas e crônicas, interligavam cenas de radionovelas, liam orações. Havia no rádio vozes poderosas, e sem arestas, como a de Heron Domingues, que provocava sobressaltos em “edições extraordinárias” do noticiário. Muitos se deixaram encantar pela beleza da própria voz e a estragaram, como o Cid Moreira, hoje exagerado, fácil e canastrão. A voz chique virou kitsch.
Entre as vozes profissionais, que garantem emprego a seus donos, estão as dos atores. Paulo Autran tinha a voz levemente anasalada, mas a colocava onde quisesse para obter o efeito exato. A de Paulo César Pereio, encorpada, maleável, transita precisa do palco aos microfones. Orson Welles foi um insuperável manipulador da voz, em volume, alcance, expressão, versatilidade. Vincent Price, vilão famoso pela voz, acrescentava a ela sobrancelhas. A de Marlon Brando era fanhosa e sem ressonância, mas ele a compensava com silêncios maravilhosos. Nas radionovelas, pela voz se identificavam vilões, mocinhas e megeras, os ouvintes “viam” a cara e a alma do personagem.
Hoje, ouvindo certos atores e atrizes da televisão, dá-se o contrário. Você vê cara, não vê coração. Caras bonitas atrapalham a percepção. Quais têm vozes maravilhosas? Não percebemos, ou não têm. No mundo real, certas vozes, mesmo de desconhecidos, mesmo ouvidas de passagem, nos tocam de modo mágico, trazendo um não se sabe quê de lembranças, ressonâncias, modulações. Nesse caso, nem precisam ser bonitas — são como coisas que guardamos em alguma caixa e que estão à nossa espera para uma surpresa.
A voz que soa bonita e sensual ao telefone nos leva a imaginar alguém que não tem nada que ver com a pessoa real. Tive uma namorada que se derretia quando topava com uma dessas vozes sedutoras do outro lado da linha, e me provocava: “Que voz! Ai, uma voz dessas cochichando no meu ouvido!”. Uma reportagem mostrou como são enganadoras as vozes do disque-erótico.
As contradições nos pegam de surpresa, fazem rir. Nos anos 1970, muitos homens usavam bigodão. De repente o bigodudo falava, e ó decepção: voz fina. Rivellino, do Corinthians, era um. Hoje já fala mais encorpado. No jornal tínhamos o encantador Vlad, bigodudo gay, contradição dupla.
No capítulo decepção, entro eu. A primeira vez que ouvi minha voz gravada, detestei. A gente não tem noção da própria voz enquanto não a ouve reproduzida; quando falamos e a ouvimos dentro da própria cabeça, ela é uma; vinda de fora para dentro é outra. O desagrado se repetiu ao longo dos anos, em entrevistas e depoimentos. Toda vez que ouço uma voz poderosa, que se impõe pela modulação e não pelo volume, sinto um “quem me dera”.

GAUDÊNCIO TORQUATO

Sede de futuro e fome do passado
GAUDÊNCIO TORQUATO 
O Estado de S.Paulo - 09/05/10

Thomas Jefferson, o terceiro presidente dos Estados Unidos (1801-1809), ao longo de sua carreira política era vítima constante de ataques da imprensa. Nem por isso deixou de produzir a lição: "Um governo que não consegue se manter contra as críticas existentes merece cair." Arrematava o pensamento dizendo que o homem pode ser governado pela razão e pela verdade, sendo a liberdade de imprensa o mais efetivo instrumento para descobri-la.

Esta lembrança tem que ver com o panorama sombrio exposto dias atrás, em Brasília, por ocasião da 5.ª Conferência Legislativa sobre Liberdade de Imprensa. Jefferson também dizia que a América Latina não tinha a tradição anglo-saxônica de liberdades. Acertou na mosca. No evento promovido pela Câmara dos Deputados, Honduras, Bolívia, Venezuela, Argentina, Equador, México e também o Brasil saíram mal na radiografia sobre governos interessados em limitar a autonomia de jornalistas e empresas de comunicação. Por que a sombra autoritária paira sobre o continente, quando o clamor pelas liberdades se torna cada vez mais elevado em todos os quadrantes do planeta?

Uma pista pode estar na fala de Simón Bolívar, que há 200 anos lamentava o fato de não haver boa-fé na América, "onde as Constituições não passam de livros e a liberdade é anarquia". O timoneiro só não podia adivinhar que sua expressão seria seguida à risca por um coronel que se gaba de ser o mais legítimo continuador da "revolução bolivariana": Hugo Chávez, o mandachuva da Venezuela. Maior ícone do autoritarismo na região, Chávez estraçalha as leis, domina os Poderes Legislativo e Judiciário e, no que diz respeito aos meios de comunicação, instala no país gigantesca mordaça sob o veredicto de que "opinar é um delito". As intermitentes ameaças que pairam sobre a mídia têm como fundamento a hipótese levantada por Oscar Vilhena Vieira, professor de Direito da FGV, apresentada no último domingo neste jornal, de que "a democracia constitucional, na visão dos governantes com viés autoritário, é um obstáculo ao enfrentamento dos problemas da região". Sob essa vertente, o sistema de freios e contrapesos deixa de funcionar, eis que um modelo hiperpresidencialista passa a dominar a fisionomia institucional.

Ante esse cenário, torna-se inevitável perguntar: os governantes guardam noção sobre o papel da imprensa para a consolidação da democracia? Será que compreendem que a democracia tem fundamento político e ético no direito de livre acesso à informação? É pouco provável. Creem que a mídia deve ser tuba de ressonância de seus governos. A bem da verdade, nas últimas décadas a imprensa foi desfigurada por perfis que habitam o Olimpo da cultura de massa, dando vazão a um repertório de insignificâncias, como atesta Carl Bernstein, que, ao lado de Bob Woodward, ajudou a derrubar, com sua investigação, o presidente Nixon. Nem por isso, porém, o sistema de comunicação deve ser extensão dos governos. Com o carisma em estado de escassez, parcela ponderável das lideranças regionais se esforça para esticar braços assistencialistas em direção às massas, removendo obstáculos que as impedem de alcançar suas metas, entre eles, a crítica midiática. Para tanto usam controles legais e políticos (leis e censura), econômicos (limitações à propriedade de uns e apoio com verbas a outros) ou sociais (rede de entidades sob seu domínio).

No nosso meio, chama a atenção o fato de que, quanto mais se expandem as redes sociais em torno da comunicação global - com milhões de brasileiros interconectados na internet -, mais se cultiva um pensamento retrógrado, centrado no controle da informação. Qual a explicação para que um jornal brasileiro, com longa trajetória de lutas em defesa das liberdades, desempenhando seu mister sob a égide de instituições republicanas, continue há 282 dias sob censura? O vice-presidente do STF, ministro Carlos Ayres Britto, no evento em Brasília, abriu uma fresta. O País atravessa um ciclo de transição, caracterizado pela passagem de uma cultura restritiva, de repressão, de desconfiança, "para uma cultura de plenitude de liberdade de imprensa". Sob esse precário abrigo, magistrados, principalmente os de primeira instância, margeando o terreno da perplexidade, tendem a cair no desvão do "negaceio", optando por uma linha dúbia. Vejam o paradoxo: em plena era de luzes e transparência, a escuridão cai sobre os olhos de parcela de nossos juízes.

Afinal de contas, a proibição feita a este jornal, para impedir informações a respeito da Operação Boi Barrica, não solapa o direito da sociedade de conhecer fatos relevantes sobre as teias do poder? O próprio ministro Britto lembra que a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa têm preferência sobre outros direitos, incluindo os ligados à privacidade. Daí não caber à Justiça nem ao Estado decisão na esfera da censura prévia. Não poderia ser esse o facho a iluminar a consciência jurídica? Sem dúvida. Acontece que a cultura autoritária teima em desdobrar seus tentáculos por todos os espaços da vida institucional.

A conclusão é que o Brasil é um cabo de guerra em que dois grupos tentam vencer a disputa. Um batalhão puxa o cabo em direção ao futuro, enquanto o outro luta para segurar os eixos do passado. O primeiro é composto por cidadãos que cultivam a liberdade em todos os campos. E que desfraldam a bandeira do progresso material e espiritual. Esta é a Nação dos sonhos comuns e dos anseios coletivos. A outra banda é a do antigo território, que abriga o vetusto Estado autoritário e onde atores arcaicos encontram dificuldades de contracenar com os personagens do século 21. Isso explica o oceano de distância entre o que a sociedade deseja e o que lhe falta.

Eis o dilema: o Brasil tem sede de futuro, mas fome do passado.

MÍRIAM LEITÃO

Volta da crise
Miriam Leitão
O GLOBO - 09/05/10

Grécia: onze milhões de habitantes, população equivalente à da região metropolitana do Rio, território menor do que o Rio Grande do Sul e um PIB que é a metade do estado de São Paulo. O país não tem peso para provocar uma crise global. Mesmo assim, está provocando. É o preço a pagar pelo sucesso do mundo — e da Europa, em particular — em aumentar as conexões na era da globalização.

Por que uma gota no oceano mundial pode provocar um maremoto? Porque ela não está sozinha. A Europa fez um pacto de estar unida na alegria e na tristeza. Amarrou os laços, criou uma moeda comum. Países pequenos e com fragilidades foram tratados como iguais a países fortes e equilibrados. Todos pagaram taxas de juros equivalentes para rolar dívidas com graus de risco bem diferentes.

Todos na crise elevaram seus déficits. Só que as dívidas são diferentes. As de países fortes viram refúgio do mercado na hora do medo.

Lições aprendidas nos últimos dois anos: um banco de investimento pode provocar uma crise global; um pequeno país faz tremer os mercados e pode detonar outra crise. Não pelo que são, mas pelo que revelam.

O Lehman Brothers revelou o quanto todo o sistema bancário estava avaliando errado o risco dos devedores, o tamanho da bolha, a dimensão da alavancagem.

Os empréstimos entre os bancos foi o canal pelo qual passou o rastilho de pólvora. A Grécia revela o grau de irresponsabilidade fiscal dos governos. Lição geral: bancos precisam de boa regulação e boa fiscalização; países têm que ter limites de gastos.

Não se deve subestimar a dinâmica dessa crise. Normalmente, a preocupação cresce quando as bolsas caem, e desanuviam assim que as bolsas sobem. O mercado de capitais é só um termômetro. Bastou um erro para haver uma fuga em manada.

O professor José Herce, da Universidade Complutense de Madri, em entrevista a Valéria Maniero, do blog, disse que há risco de uma crise sistêmica. E lembrou a velocidade, dizendo que há um mês uma ajuda de C 110 bilhões seria mais do que a Grécia precisaria; agora, não parece ser suficiente.

— O caso da Grécia está provocando um problema sistêmico em que o euro acaba prejudicado. A dívida alemã está virando refúgio dos que correm de outros riscos. O custo do resgate da Grécia disparou. A lentidão e as dúvidas dos responsáveis europeus agravaram a crise e agora são necessárias respostas mais contundentes — disse o economista.

Ele ainda acha possível evitar que a própria Espanha peça ajuda ao FMI: — Hoje, é impensável esse cenário. A escada de descida até ele tem muitos degraus.

Mas, para reduzir o déficit, a Espanha terá que fazer ajustes.

Herce acha que os espanhóis podem protestar no início — como os gregos —, mas que acabarão aceitando, em nome da estabilidade, remédios amargos como redução dos gastos sociais, dos salários e altas de impostos: — Hoje, fiz um teste com meus alunos de macroeconomia sobre a aceitação dessas medidas, e 70% concordaram.

Mais fácil ter concordância num curso de macroeconomia do que nas ruas, onde 4,5 milhões não têm emprego. O desemprego de 20% da Espanha chega a 40% entre os jovens: — Fruto das falhas no nosso sistema produtivo, na nossa competitividade e no sistema trabalhista. É preciso reduzir custos trabalhistas para aumentar o emprego e fazer uma grande reforma do trabalho o quanto antes.

Nas crises, descobre-se que certos remédios são universais. Equilíbrio nas contas públicas, mercado de trabalho flexível, previdência ajustada aos novos padrões demográficos não são uma receita neoliberal.

São remédios da prudência.

O risco que a Europa corre é repetir, com a Grécia, erros já cometidos em outros países: um remédio mais forte do que o organismo enfraquecido pode aguentar. Como foi no caso da Argentina, em 2001, no governo Fernando de la Rua. As imposições do FMI foram tão duras num país já em recessão que o sistema político entrou em colapso e a moratória desorganizada foi decretada.

A economista Monica Baumgarten de Bolle, da Galanto Consultoria, tem dito que o remédio deveria ser uma reestruturação organizada, como foi a do Uruguai, seguida de um esforço para blindar os outros países europeus.

O remédio imposto à Grécia é de reduzir o déficit de 14% para 3% em três anos. Um corte de 11 pontos percentuais do PIB, numa economia que está com 4% de recessão e na qual 75% dos gastos públicos vão para o pagamento de salários e pensões.

— Nunca vi um ajuste de dois dígitos no déficit em um período de três anos. Acho praticamente impossível que esse plano de socorro seja bem sucedido sem uma reestruturação da dívida grega.

O Uruguai é um caso de sucesso na reestruturação que obteve o aval de quase 100% dos credores. Ela foi feita depois que o país anunciou medidas de ajuste para reduzir o déficit. O problema é que a Grécia faz parte do euro e há um receio grande dos países de uma reestruturação de dívida — disse.

Isso mostra que os céticos do euro tinham razão em parte.

O sistema de moeda única ligando países diferentes não se preparou para crises. Na alta, todos foram felizes, na descida, eles escorregam. O sistema monetário não foi capaz de ver a fraude grega nas estatísticas, de impor limites aos desequilíbrios fiscais, de ter soluções rápidas na emergência.

Também não sabe o que fazer se um dos países for obrigado a entrar em moratória.

É bom que procurem respostas.

E nós com isso? Bom, nosso mundo é o mundo todo; e em economia, certas leis são universais. Melhor é se preparar para a turbulência e evitar erros velhos.

Já conhecemos os passos dessa estrada