sábado, março 13, 2010


Brasil

O pedágio do PT

Além de desviar dinheiro da Bancoop, o tesoureiro do partido
arrecadava dinheiro para o caixa do mensalão cobrando propina


Alexandre Oltramari e Diego Escosteguy
Fotos Wladimir de Souza/Diário de São Paulo e Sérgio Lima/Folha Imagem
O ELO PERDIDO DO MENSALÃOO corretor de câmbio Lúcio Funaro prestou seis depoimentos sigilosos à Procuradoria-Geral da República, nos quais narrou como funcionava a arrecadação de propina petista nos fundos de pensão: "Ele (João Vaccari, á esq.) cobra 12% de comissão para o partido"

VEJA TAMBÉM
O novo tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, é uma peça mais fundamental do que parece nos esquemas de arrecadação financeira do partido. Investigado pelo promotor José Carlos Blat por suspeita de estelionato, apropriação indébita, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha no caso dos desvios da Cooperativa Habitacional dos Bancários de São Paulo (Bancoop), Vaccari é também personagem, ainda oculto, do maior e mais escandaloso caso de corrupção da história recente do Brasil: o mensalão - o milionário esquema de desvio de dinheiro público usado para abastecer campanhas eleitorais do PT e corromper parlamentares no Congresso. O mensalão produziu quarenta réus ora em julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Entre eles não está Vaccari. Ele parecia bagrinho no esquema. Pelo que se descobriu agora, é um peixão. Em 2003, enquanto cuidava das finanças da Bancoop, João Vaccari acumulava a função de administrador informal da relação entre o PT e os fundos de pensão das empresas estatais, bancos e corretoras. Ele tocava o negócio de uma maneira bem peculiar: cobrando propina. Propina que podia ser de 6%, de 10% ou até de 15%, dependendo do cliente e do tamanho do negócio. Uma investigação sigilosa da Procuradoria-Geral da República revela, porém, que 12% era o número mágico para o tesoureiro - o porcentual do pedágio que ele fixava como comissão para quem estivesse interessado em se associar ao partido para saquear os cofres públicos.
Fotos Celso Junior/AE e Eliária Andrade/Ag. O Globo
"Ele (Vaccari) chamava o Delúbio de 'professor'. É homem do Zé Dirceu. Faz as operações com fundos grandes - Previ, Funcef, Petros..." Corretor Lúcio Funaro, em depoimento ao MP 
CAPO
José Dirceu tinha Delúbio Soares (à esq.) e Vaccari como arrecadadores para o mensalão. O tesoureiro atual do PT cuidava dos fundos de pensão
 

A revelação do elo de João Vaccari com o escândalo que produziu um terremoto no governo federal está em uma série de depoimentos prestados pelo corretor Lúcio Bolonha Funaro, considerado um dos maiores especialistas em cometer fraudes financeiras do país. Em 2005, na iminência de ser denunciado como um dos réus do processo do mensalão, Funaro fez um acordo de delação premiada com a Procuradoria-Geral da República. Em troca de perdão judicial para seus crimes, o corretor entregou aos investigadores nomes, valores, datas e documentos bancários que incriminam, em especial, o deputado paulista Valdemar Costa Neto, do PR, réu no STF por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. Em um dos depoimentos, ao qual VEJA teve acesso, Lúcio Funaro também forneceu detalhes inéditos e devastadores da maneira como os petistas canalizavam dinheiro para o caixa clandestino do PT. Apresentou, inclusive, o nome do que pode vir a ser o 41º réu do processo que apura o mensalão - o tesoureiro João Vaccari Neto. "Ele (Vaccari) cobra 12% de comissão para o partido", disse o corretor em um relato gravado pelos procuradores. Em cinco depoimentos ao Ministério Público Federal que se seguiram, Funaro forneceu outras informações comprometedoras sobre o trabalho do tesoureiro encarregado de cuidar das finanças do PT:
Divulgação
"Rural, BMG, Santos... Tirando os bancos grandes, quase todos têm negócio com eles."Corretor Lúcio Funaro, em depoimento ao MP 

• Entre 2003 e 2004, no auge do mensalão, João Vaccari Neto era o responsável pelo recolhimento de propina entre interessados em fazer negócios com os fundos de pensão de empresas estatais no mercado financeiro.
• O tesoureiro concentrava suas ações e direcionava os investimentos de cinco fundos - Previ (Banco do Brasil), Funcef (Caixa Econômica), Nucleos (Nuclebrás), Petros (Petrobras) e Eletros (Eletrobrás) -, cujos patrimônios, somados, chegam a 190 bilhões de reais.
• A propina que ele cobrava variava entre 6% e 15%, dependendo do tipo de investimento, do valor do negócio e do prazo.
• O dinheiro da propina era carreado para o caixa clandestino do PT, usado para financiar as campanhas do partido e subornar parlamentares.
• João Vaccari agia em parceria com o ex-tesoureiro petista Delúbio Soares e sob o comando do ex-ministro José Dirceu, réu no STF sob a acusação de chefiar o bando dos quarenta.
Fotos Lula Marques/Folha Imagem e Celso Junior/AE
O PATROCINADOR
O presidente do PT, José Eduardo Dutra, indicou Vaccari para tesoureiro do partido na campanha presidencial da ministra Dilma Rousseff, embora dirigentes da sigla tenham tentado vetar o nome do sindicalista, por ele ter "telhado de vidro"

Lúcio Funaro contou aos investigadores o que viu, ouviu e como participou. Os destinos de ambos, Funaro e Vaccari, se cruzaram nas trilhas subterrâneas do mensalão. Eram os últimos meses de 2004, tempos prósperos para as negociatas da turma petista liderada por José Dirceu e Delúbio Soares. As agências de publicidade de Marcos Valério, o outro ponta de lança do esquema, recebiam milhões de estatais e ministérios - e o BMG e o Rural, os bancos que financiavam a compra do Congresso, faturavam fortunas com os fundos de pensão controlados por tarefeiros do PT. Naquele momento, Funaro mantinha uma relação lucrativa com Valdemar Costa Neto. Na campanha de 2002, o corretor emprestara ao deputado 3 milhões de reais, em dinheiro vivo. Pela lógica que preside o sistema político brasileiro, Valdemar passou a dever-lhe 3 milhões de favores. O deputado, segundo o relato do corretor, foi cobrar esses favores do PT. É a partir daí que começa a funcionar a engrenagem clandestina de fabricação de dinheiro. O deputado detinha os contatos políticos; o corretor, a tecnologia financeira para viabilizar grandes negociatas. Combinação perfeita, mas que, para funcionar, carecia de um sinal verde de quem tinha o comando da máquina. Valdemar procurou, então, Delúbio Soares, lembrou-lhe a ajuda que ele dera à campanha de Lula e pediu, digamos, oportunidades. De acordo com o relato do corretor, Delúbio indicou João Vaccari para abrir-lhe algumas portas.
Para marcar a primeira conversa com Vaccari, Funaro ligou para o celular do sindicalista. O encontro, com a presença do deputado Costa Neto, deu-se na sede da Bancoop em São Paulo, na Rua Líbero Badaró. Na conversa, Vaccari contou que cabia a ele intermediar operações junto aos maiores fundos de pensão - desde que o interessado pagasse um "porcentual para o partido (PT)", taxa que variava entre 6% e 15%, dependendo do tipo de negócio, dos valores envolvidos e do prazo. E foi didático: Funaro e Valdemar deveriam conseguir um parceiro e uma proposta de investimento. Em seguida, ele se encarregaria de determinar qual fundo de pensão se encaixaria na operação desejada. O tesoureiro adiantou que seria mais fácil obter negociatas na Petros ou na Funcef. Referindo-se a Delúbio sempre como "professor", Vaccari explicou que o PT havia dividido o comando das operações dos fundos de pensão. O petista Marcelo Sereno, à época assessor da Presidência da República, cuidava dos fundos pequenos. Ele, Vaccari, cuidava dos grandes. O porcentual cobrado pelo partido, entre 6% e 15%, variava de acordo com o tipo do negócio. Para investimentos em títulos de bancos, os chamados CDBs, nicho em que o corretor estava interessado, a "comissão" seria de 12%. Funaro registrou a proposta na memória, despediu-se de Vaccari e foi embora acompanhado de Costa Neto.
Donos de uma fortuna equivalente à dos Emirados Árabes, os fundos de pensão de estatais são alvo da cobiça dos políticos desonestos graças à facilidade com que operadores astutos, como Funaro, conseguem desviar grandes somas dando às operações uma falsa aparência de prejuízos naturais impostos por quem se arrisca no mercado financeiro. A CPI dos Correios, que investigou o mensalão em 2006, demonstrou isso de maneira cabal. Com a ajuda de técnicos, a comissão constatou que os fundos foram saqueados em operações fraudulentas que beneficiavam as mesmas pessoas que abasteciam o mensalão. Funaro chegou a insinuar a participação de João Vaccari no esquema em depoimento à CPI, em março de 2006.  Disse que Vaccari era operador do PT em fundos de pensão, mas que, por ter sabido disso por meio de boatos no mercado financeiro, não poderia se estender sobre o assunto. Sabe-se, agora, que, na ocasião, ele contou apenas uma minúscula parte da história.
A história completa já havia começado a ser narrada sete meses antes a um grupo de procuradores da República do Paraná. Em agosto de 2005, emparedado pelo Ministério Público Federal por causa de remessas ilegais de 2 milhões de dólares ao exterior, Funaro propôs delatar o esquema petista em troca de perdão judicial. "Vou dar a vocês o cara do Zé Dirceu. O Marcelo Sereno faz operação conta-gotas que enche a caixa-d'água todo dia para financiar operações diárias. Mas esse outro aqui, ó, o nome dele nunca saiu em lugar nenhum. Ele faz as coisas mais volumosas", disse Funaro, enquanto escrevia o nome "Vaccari", em uma folha branca, no alto de um organograma. Um dos procuradores quis saber como o PT desviava dinheiro dos fundos. "Tiram dinheiro muito fácil. Rural, BMG, Santos... Tirando os bancos grandes, quase todos têm negócio com ele", disse. O corretor explicou aos investigadores que se cobrava propina sobre todo e qualquer investimento. "Sempre que um fundo compra CDBs de um banco, tem de pagar comissão a eles (PT)", explicou. "Vou dar provas documentais. Ligo para ele(Vaccari) e vocês gravam. Depois, é só ver se o fundo de pensão comprou ou não os CDBs do banco."
O depoimento de Funaro foi enviado a Brasília em dezembro de 2005, e o STF aceitou transformá-lo formalmente em réu colaborador da Justiça. Parte das informações passadas foi usada para fundamentar a denúncia do mensalão. A outra parte, que inclui o relato sobre Vaccari, ainda é guardada sob sigilo. VEJA não conseguiu descobrir se Funaro efetivamente gravou conversas com o tesoureiro petista, mas sua ajuda em relação aos fundos foi decisiva. Entre 2003 e 2004, os três bancos citados pelo corretor - BMG, Rural e Santos - receberam 600 milhões de reais dos fundos de pensão controlados pelo PT. Apenas os cinco fundos sob a influência do tesoureiro aplicaram 182 milhões de reais em títulos do Rural e do BMG, os principais financiadores do mensalão, em 2004. É um volume 600% maior que o do ano anterior e 1 650% maior que o de 2002, antes de o PT chegar ao governo. As investigações da polícia revelaram que os dois bancos "emprestaram" 55 milhões de reais ao PT. É o equivalente a 14,1% do que receberam em investimentos - portanto, dentro da margem de propina que Funaro acusa o partido de cobrar (entre 6% e 15%). Mas, para os petistas, isso deve ser somente uma coincidência...
Desde que começou a negociar a delação premiada com a Justiça, Funaro prestou quatro depoimentos sigilosos em Brasília. O segredo em torno desses depoimentos é tamanho que Funaro guarda cópia deles num cofre no Uruguai. "Se algo acontecer comigo, esse material virá a público e a República cairá", ele disse a amigos. Hoje, aos 35 anos, Funaro, formado em economia e considerado até por seus desafetos um gênio do mundo financeiro, é um dos mais ricos e ladinos investidores do país. Sabe, talvez como ninguém no Brasil, tirar proveito das brechas na bolsa de valores para ganhar dinheiro em operações tão incompreensíveis quanto lucrativas. O corretor relatou ao Ministério Público que teve um segundo encontro com Vaccari, sempre seguindo orientação do "professor Delúbio", no qual discutiu um possível negócio com a Funcef, mas não forneceu mais detalhes nem admitiu se as tratativas deram certo.
VEJA checou os extratos telefônicos de Delúbio remetidos à CPI dos Correios e descobriu catorze ligações feitas pelo "professor" a Vaccari no mesmo período em que se davam as negociações entre Funaro e o guardião dos fundos de pensão. O que o então tesoureiro do PT tinha tanto a conversar com o dirigente da cooperativa? É possível que Funaro tenha mentido sobre os encontros com Vaccari? Em tese, sim. Pode haver motivos desconhecidos para isso. Trata-se, contudo, de uma hipótese remotíssima. Quando fez essas confissões aos procuradores, Vaccari parecia ser um personagem menor do submundo petista. "Os procuradores só queriam saber do Valdemar, e isso já lhes dava trabalho suficiente", revelou Funaro a amigos, no ano passado. As investigações que se seguiram demonstraram que Funaro dizia a verdade. Seus depoimentos, portanto, ganharam em credibilidade. Foram aceitos pela criteriosa Procuradoria-Geral da República como provas fundamentais para incriminar a quadrilha do mensalão. Muitos tentaram, inclusive o lobista Marcos Valério, mas apenas Funaro virou réu-colaborador nesse caso. Isso significa que ele apresentou provas documentais do que disse, não mentiu aos procuradores e, sobretudo, continua à disposição do STF para ajudar nas investigações. Em contrapartida, receberá uma pena mais branda no fim do processo - ou será inocentado.
Durante a semana, Vaccari empenhou-se em declarar que, no caso Bancoop, ele e outros dirigentes da cooperativa são inocentes e que culpados são seus acusadores e suas vítimas. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o tesoureiro do PT disse que o MP agiu "para sacanear" e que os 31 milhões de reais sacados na boca do caixa pela Bancoop teriam sido "movimentações interbancárias". Os documentos resultantes da quebra do sigilo bancário da entidade mostram coisa diferente. Entre os cheques emitidos pela Bancoop para ela mesma ou para seu banco, o Bradesco, "a imensa maioria", segundo o MP, continha o código "SQ21" - que quer dizer saque. Algumas vezes aparecia a própria palavra escrita no verso (veja reproduções). Se, a partir daí, o dinheiro sacado foi colocado em uma mala, usado para fazer pagamentos, ou depositado em outras contas, não se sabe. A maioria dos cheques nominais ao banco (que também permitem movimentação na boca do caixa) não continha informações suficientes para permitir a reconstituição do seu percurso, afirma o promotor Blat. "De toda forma, fica evidente que se tratou de uma manobra para dificultar ou evitar o rastreamento do dinheiro", diz ele.
Na tentativa de inocentar-se, o tesoureiro do PT distribuiu culpas. Segundo ele, os problemas de caixa da cooperativa se deveram ao comportamento de cooperados que sabiam que os preços iniciais dos imóveis eram "estimados" e "não quiseram pagar" a diferença depois que foram constatados "erros de cálculo" nas estimativas. Ele só omitiu que, em muitos casos, os "erros de cálculo" chegaram a valores correspondentes a 50% do preço inicial do apartamento. Negar evidências e omitir fraudes. Essa é a lei da selva na política. Até quando?

Cheques à moda petista

VEJA obteve imagens de cheques que mostram a suspeitíssima movimentação bancária da Bancoop. O primeiro, no valor de 50 000 reais, além de exibir a palavra "saque" no verso, traz o código SQ21, que tem o mesmo significado (saque) e se repete na maioria dos cheques emitidos pela Bancoop para ela mesma. O segundo destina-se à empresa Caso Sistemas de Segurança, do "aloprado" Freud Godoy, e pertence a uma série que até agora já soma 1,5 milhão de reais. O terceiro mostra repasse da Germany para o PT, em ano de eleição. A Germany, empresa de ex-dirigentes da Bancoop, tinha como único cliente a própria cooperativa
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Empreitadas-fantasma

Fernando Schneider
"Entre 2001 e 2004, eu dei 15 000 reais em notas frias à Bancoop. Diziam com todas as letras que o dinheiro era para as campanhas do Lula e da Marta."Empreiteiro "João", que prestou serviços à Bancoop
Um empreiteiro de 46 anos que prestou serviços à Bancoop por dez anos repetiu à repórter Laura Diniz as acusações que passou oficialmente ao promotor do caso Bancoop. O empreiteiro conta como emitiu notas frias a pedido dos diretores da cooperativa, e ouviu que o dinheiro desviado seria destinado às campanhas de Lula à Presidência, em 2002, e de Marta Suplicy à prefeitura de São Paulo, em 2004
Qual foi a primeira vez que a Bancoop pediu notas frias ao senhor? 
Quando o Lula era candidato a presidente. O Ricardo (o engenheiro Ricardo Luiz do Carmo, responsável pelas construções da Bancoop) dizia que eram para a campanha. Nunca me forçaram a nada, mas, se você não fizesse isso, se queimava. A primeira nota fria que dei foi de 2 000 reais por um serviço que não fiz em um prédio no Jabaquara. A Bancoop precisava assinar a nota para liberar o pagamento. Quando era fria, liberavam de um dia para o outro. Notas normais demoravam de dez a quinze dias para sair.
Quantas notas frias o senhor deu? 
Entre 2001 e 2004, dei 15 000 reais em notas frias à Bancoop. Isso, só eu. Em 2004, havia pelo menos uns 150 empreiteiros trabalhando para a cooperativa. Eles diziam com todas as letras que o dinheiro era para as campanhas do Lula e da Marta e ainda pediam para votar no Lula. Falavam que se ele ganhasse teríamos serviço para a vida inteira. Até disse aos meus empregados para votar nele.
O que o senhor sabe sobre a Germany? 
Sei que eles ganharam muito dinheiro. Um dia, ouvi o Luiz Malheiro, o Alessandro Bernardino e o Marcelo Rinaldi (donos da Germany e dirigentes da Bancoop) festejando porque o lucro do mês era de 500 000 reais. Eles estavam bebendo uísque e comemorando num dia à tarde, na sede da Bancoop.

Mais vítimas da Bancoop

Fotos Fernando Schneider

"SE EU PAGAR MAIS, NÃO COMO"
"Eu e meu marido já colocamos todas as nossas economias no apartamento que compramos da Bancoop, mas as cobranças adicionais nunca param de chegar. Já gastamos 90 000 reais, eles querem mais 40 000. Paramos de pagar. Se pagar, não como. Eu me sinto revoltada e humilhada. Tenho muito medo de perder tudo."Tânia Santos Rosa, 38 anos, ex-bancária

"TENHO 68 ANOS E MORO DE FAVOR"
"Comprei um apartamento em São Paulo, paguei os 78 000 do contrato, mas só ergueram duas das três torres prometidas. A minha parou no meio. Eles queriam mais 30 000 reais, mas eu não tinha mais de onde tirar dinheiro. Queria jogar uma bomba na Bancoop. Hoje, ainda moro de favor na casa da minha sogra, para escapar do aluguel."Clóvis Pardo, 68 anos, aposentado

"VOU RECLAMAR PARA O LULA?"
"Comprei um apartamento da Bancoop em 2001 e ele nunca saiu do chão. Quitei tudo, os 65 000 reais, mas não tenho esperança de ver o prédio de pé. Queria o dinheiro de volta, mas acho que ele já foi todo gasto em campanhas do PT. Não tenho mais um centavo na poupança e ainda moro de aluguel. O que eu posso fazer? Reclamar para o Lula?"Alda Cabral Ramos, 58 anos, representante comercial



FERNANDO RODRIGUES


Deficit de valores


Folha de S. Paulo - 13/03/2010
 
Lula comparou os perseguidos políticos cubanos em greve de fome com bandidos presos no Brasil. Não se encontra um ser pensante no governo para defender o presidente em conversas privadas. A classificação da fala lulista vai de despautério para baixo.
Em público é outra história. A ex-presa política Dilma Rousseff deu o tom ao ser convidada a comentar: "Vocês não vão conseguir me tirar aqui uma crítica ao presidente Lula, nem que a vaca tussa".
Na noite de quinta-feira, o presidente resolveu interpretar as críticas na mídia a respeito de seu amor pelo regime autoritário de Cuba. "Leiam os editoriais dos jornais", recomendou. "De vez em quando, é bom ler para a gente ver o comportamento de alguns falsos democratas, que dizem que são democratas, mas que agem querendo que o editorial deles fosse a única voz pensante no mundo".
A reação de Lula ilustra dois aspectos relevantes da política brasileira atual. Primeiro, como a alta popularidade produz na mesma proporção uma atrofia no superego presidencial. Segundo, como o conceito de democracia e direitos fundamentais é primitivo na mente do titular do Planalto.
É possível a esta altura Lula já ter percebido o erro cometido. Inteligente, o petista poderia pelo menos ter dito: "Expressei-me mal".
Mas a ausência de um ato de contrição é o menor problema. O pior é Lula jogar a sua popularidade pela janela quando se tratou de contribuir para a consolidação dos valores da democracia na América Latina. A diplomacia petista ateve-se a passar a mão na cabeça de governantes obtusos e ainda enroscados em uma dobra do tempo pré-queda do Muro de Berlim. Esse é o legado lulista numa perspectiva de avanços e retrocessos nas instituições democráticas do continente.

CLÓVIS ROSSI

Lula pisa campo minado em Israel


FOLHA DE SÃO PAULO - 13/03/10


Visita inédita em 150 anos esbarra na divergência sobre a imposição ou não de sanções ao Irã por seu programa nuclear


JERUSALÉM - AO desembarcar amanhã à noite em Tel Aviv, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tornar-se-á o primeiro chefe de Estado brasileiro a visitar Israel em exatos 150 anos (o anterior foi dom Pedro 2º).
Pena que a efeméride venha acompanhada de uma divergência já contratada: "Sabemos que a posição do governo brasileiro sobre o Irã não coincide com a nossa", admite Dorit Shavit, a responsável por América Latina no Ministério de Assuntos Exteriores israelense.
O fundo da divergência é assim resumido por ela: "O governo brasileiro fala em engajamento, e nós sabemos que só sanções podem evitar que o Irã desenvolva a bomba".
Não se trata de um desacordo menor, desses que são comuns mesmo entre países com bom relacionamento entre si. Do ponto de vista do governo e da sociedade israelenses, é uma questão vital. As notórias e públicas ameaças do regime iraniano de varrer Israel do mapa poderiam passar de bravata a uma possibilidade real se o Irã tiver a bomba.
Por isso, explica-se o fato de Israel estar sendo quase tão ativo quanto os Estados Unidos na tentativa de convencer a comunidade internacional de que, "quanto mais fortes forem as sanções, mais provável será forçar o regime iraniano a escolher entre avançar seu programa nuclear ou tratar de sua própria permanência no futuro", como diz o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu.
Israel despachou, nos últimos meses, delegações diplomáticas para, entre outros países, o Brasil e a China. Os chineses são o maior obstáculo para as "fortes sanções" desejadas, porque têm poder de veto no Conselho de Segurança. Para convencê-los, seria importante que países que também são contra sanções mas não têm poder de veto as apoiassem, casos de Brasil, Líbano e Turquia.
Netanyahu certamente voltará a conversar com Lula sobre o assunto, mas parece impossível que o governante brasileiro altere a sua posição, reiterada tantas vezes, de que não é conveniente "colocar o Irã contra a parede".
Outro território minado na visita é do processo de paz entre Israel e palestinos, em que o Brasil tem a declarada intenção de exercer um papel. Mas não é uma questão que se coloque agora, dado que o processo de paz está estancado, e seu mais recente sopro de vida cessou na antevéspera da chegada de Lula.
De todo modo, o processo de paz estará no cardápio de Lula, como está de qualquer visitante a Israel e aos territórios palestinos. E tende a ser outro ponto de atrito entre o brasileiro e seus anfitriões israelenses, mesmo que Lula pretenda manter uma posição equilibrada entre os lados em conflito.
Afinal, "os palestinos nada mais têm a oferecer neste estágio; estão sem um Estado e enfrentando duras realidades econômicas e sociais devido à continuação da ocupação israelense", como diz Mohamed Elmenshawy, editor-chefe da "Arab Insight", publicação de análises sobre Oriente Médio produzida pelo World Security Institute, baseado em Washington.
É puro sentido comum e, portanto, Lula pode repetir essa avaliação tanto em Israel como nos territórios palestinos. Se não o fizer, perde crédito com os palestinos. Se o fizer, Netanyahu discordará com certeza.

ARI CUNHA


Funai sofre com índios


Correio Braziliense - 13/03/2010
 
Cuidar de índios é mister dos piores, principalmente no Brasil. O mundo fica olhando para nossos silvícolas. Alguns foram ao exterior para exibição aos estrangeiros. Presidir o órgão é perigo de vida. Para combater o governo, fazem o que bem entendem. As leis não são a seu favor. Só quando interessam como propaganda do país. Índios invadem terras, cometem assassinatos bárbaros. A lei não permite punição. Valendo-se disso, fazem e acontecem. No Distrito Federal fecham a repartição, fazem diretores de reféns, esfregam o facão no pescoço das autoridades. Sempre foram amparados pelo governo tendo só direitos e dever nenhum. Não conhecem as obrigações da democracia, só as benesses.

A frase que não foi pronunciada
“Acho que adianta sim chorar os royalties derramados.”
» Sérgio Cabral pensando esperançoso.
Integrar

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Brasília precisa de órgão que fiscalize as nascentes do DF. Melhor fazer agora que lamentar depois. A natureza prova que não tolera desaforo. Vem do desmatamento o surgimento de barrancos e assoreamento do lago. Acontece que, para instalar moradia, o ser humano se impõe. Melhor seria integrar-se ao ambiente.
Quadro

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Depois da crise dos EUA, investidores voltam a acreditar no país. O orçamento do BNDES em 2010 será de R$ 120 bilhões. Apesar da retração nas aplicações no primeiro semestre do ano passado, a economia se recupera e a perspectiva de inflação é remota.
Críticos

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Depois que o presidente Lula alfinetou a imprensa, a EBC está na mira. O órgão de divulgação das atividades do Executivo não escapou das lentes. A falta de licitação para contrato de pessoas e serviços começa a chamar a atenção. Pelo visto não haverá silêncio.
Amizade

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Patrus Ananias alimenta grande amizade pelo senador Tasso Jereissati. Afinal o senador teve importante participação na aprovação de projetos do Ministério de Ação Social. Qualquer comentário contrário é tentativa de desagregação.
Eu não!

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Por falar em contenda, a origem do indiciamento do presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, continua um mistério. O assunto despertou a atenção depois que o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, negou ser o autor da denúncia.
Eu sim!

» 
Coincidências à parte, o procurador Roberto Gurgel é o mesmo que declarou que o prazo de vencimento da prisão preventiva do governador José Roberto Arruda está longe de chegar ao fim.
Abalo

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Sebastian Piñera, do Chile, tomou posse com o chão tremendo. O terremoto no momento da solenidade assustou mais de 2 mil convidados. Quem chega à memória é o presidente Figueiredo. A passagem da faixa presidencial também aconteceu em meio ao tremor. Só que, nesse caso, político.
Mentirinha

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Se o presidente Lula vai ou não adotar o Rafale não importa. O que o presidente Sarkozy demonstrou é que seria extremamente positivo um marketing favorável à França. Pelo menos durante as eleições de domingo.
Bom senso

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Cabe aos partidos a responsabilidade de adotar o projeto ficha limpa. Não seria necessário aguardar a boa vontade do parlamento em legislar sobre o assunto. A honestidade não precisa ser lei para funcionar.
História de Brasília

Os grupos hoteleiros de todo o país estão se movimentando, fortemente, em torno da notícia de concorrência pública para a exploração do Brasília Palace Hotel. Enquanto isso, os hotéis do Lago não são postos na mesma situação, o que já deveria ter acontecido. (Publicado em 26/2/1961)

J. R. GUZZO


REVISTA VEJA
J.R. Guzzo

Área de risco

"O cidadão tem o direito de gostar da nova Cidade Administrativa
de Minas Gerais, mas ela levanta discussões que vão muito além da estética"

A nova Cidade Administrativa de Minas Gerais, que acaba de ser inaugurada em Belo Horizonte com a assinatura de Oscar Niemeyer e o propósito de reunir num só local as secretarias estaduais e o palácio do governo, é desde já um marco na arquitetura mineira e na biografia do governador Aécio Neves, como a principal obra física deixada por sua gestão. É, também, uma boa oportunidade para examinar as armadilhas que costumam cercar projetos arquitetônicos ambiciosos e tentativas de garantir um lugar na história com a construção de monumentos. É natural que esses riscos existam, quando se leva em conta, para começo de conversa, que arquitetura é sempre uma atividade perigosa. O arquiteto pode errar sozinho, mas quando erra faz todo mundo sentir os efeitos dos erros que cometeu - seus estragos degeneram a paisagem, que é um bem comum, não podem ser ignorados e duram muito tempo. Maus livros ou filmes ruins, só para comparar, não machucam ninguém; não são lidos nem vistos, simplesmente, e acabam sumindo da praça. Já uma calamidade de concreto, aço e vidro fica aí à vista do cidadão, todos os dias, durante décadas. Para livrar-se dela, só com dinamite.
Não há tratamento preventivo para evitar esses desastres, nem em obras públicas nem em obras particulares, nem aqui nem em qualquer outro lugar; na verdade, isso pode acontecer nas melhores cidades do mundo. Paris, por exemplo, talvez ofereça as demonstrações mais agressivas do que é capaz de produzir a combinação entre a mania de grandeza dos governos e a arrogância dos arquitetos. Pensar que seja possível melhorar a paisagem de uma cidade como Paris recorrendo a escritórios de arquitetura é, obviamente, de uma pretensão sem limites, mas esse tipo de observação não parece constranger os envolvidos. O resultado é o que se vê. Paris passou por duas guerras mundiais no século XX; não sofreu, em nenhuma delas, sequer uma fração das deformações que lhe foram impostas pelos arquitetos, e que prometem estar aí pelas próximas gerações. E o novo centro administrativo de Belo Horizonte, como fica nessa foto? A obra não se qualifica para entrar em nenhuma lista dos grandes horrores arquitetônicos do Brasil, mas também não está destinada a ser uma nova atração na capital mineira. Parece, apenas, fruto de uma arquitetura cansada, previsível, com construções que dão a impressão de já estarem velhas no dia da inauguração. Não se vê, ali, nenhum sinal de que tenha ocorrido alguma boa ideia na arquitetura mundial ao longo dos últimos cinquenta anos. Não dá para notar, no conjunto, a presença de elementos do reino vegetal.
Há nisso tudo, naturalmente, questões de gosto, que não se discutem. O cidadão tem o direito de gostar da obra recém-inaugurada; também tem o direito de não gostar, sobretudo quando se considera que é ele quem está pagando a conta, como contribuinte. Mas a Cidade Administrativa de Minas Gerais levanta discussões que vão muito além da estética. Belo Horizonte, como todas as grandes cidades brasileiras, vive uma necessidade desesperada de salvar o seu centro; por que, a esta altura, levar a sede do governo para um lugar que fica a 20 quilômetros de distância? O primeiro efeito prático da mudança, do ponto de vista do interesse público, foi um corte de duas horas na jornada de trabalho dos funcionários, de oito para seis por dia, em compensação pelo tempo a mais que vão gastar indo e voltando do serviço; a redução vale até o fim deste ano. A experiência mostra que se deve temer, também, pelo futuro do Palácio da Liberdade - um dos mais belos palácios de governo do Brasil, em funcionamento desde 1897 e inseparável da alma de Belo Horizonte. O palácio já escapou de ser demolido, no fim dos anos 60, por sugestão do mesmo Oscar Niemeyer, que via nele uma intromissão europeia na cidade; não escapará de ser mais um "centro cultural", nome que os governos dão aos edifícios que abandonam e em relação aos quais não sabem o que fazer. Não se entende, ainda, o argumento de que a mudança dará mais "eficiência" à administração; o que mata a qualidade do serviço público são os seus processos, envenenados por uma burocracia demente, e não a localização dos prédios do governo. A mesma credibilidade se pode dar à promessa de economizar, em aluguéis, "90 milhões" de reais por ano, o que pagaria em dezoito anos o custo do novo centro. Quem, em 2028, vai estar fazendo essas contas?
Ninguém, é claro. O que interessa, no teatro da vida pública, é o espetáculo de hoje.

PUNHETA

WILEN MANTELI


O mito do porto público

O ESTADO DE SÃO PAULO - 13/03/10

A tendência do governo Lula de reforçar a presença do Estado nos setores de infraestrutura fez recrudescer o debate sobre a privatização versus estatização no sistema portuário. Os que defendem a revalorização do conceito de porto público lançam mão do argumento da "democratização do acesso", expresso na ideia de que o pequeno exportador tem dificuldade para utilizar o terminal privado e que só o porto público pode garantir tarifas módicas e igualdade de tratamento entre grandes e pequenos clientes.


Essa ideia não tem fundamento. Vale lembrar que, quando o governo operava com exclusividade os portos, não praticava tarifas módicas. Desde o início do programa de privatização de serviços portuários, o custo da movimentação de um contêiner nos portos brasileiros caiu cerca de 50%. E o contêiner é emblemático nessa discussão, pois a maior parte da carga marítima proveniente de pequenos exportadores é hoje conteinerizada.

Terminal privado quer clientes, independentemente do porte. Toda empresa de prestação de serviços sabe que não é bom negócio ficar refém de poucos clientes, ainda que grandes. Para os terminais de contêineres é sempre rentável ampliar a base de usuários, porque, em se tratando de um sistema padronizado de acondicionamento de cargas, o pequeno volume não afeta a economia de escala no nível operacional. O que compromete o acesso do pequeno exportador ao mercado externo são a carga tributária, o câmbio e os juros, além do chamado custo Brasil. No sistema portuário, o que mais onera as operações são o tempo improdutivo, decorrente, em quase 100% dos casos, de problemas de acesso ao porto, a lentidão burocrática e as greves de servidores públicos.

Em nenhum momento o Estado deixou de ter forte presença nos portos brasileiros, sujeitos à fiscalização de dez diferentes ministérios. O programa de privatização de serviços portuários levou à criação da agência reguladora do setor, a Antaq. A Lei dos Portos (nº 8.630), que estabeleceu um moderno marco regulatório para a participação da iniciativa privada, instituiu também o Conselho de Autoridade Portuária (CAP), órgão colegiado presidido pelo governo ao qual se subordinam todos os terminais instalados na área pública. Só ficam de fora os terminais de uso privativo vinculados a unidades produtivas, a exemplo dos terminais da Petrobrás e da Vale.

É inegável que o Estado brasileiro tem controle sobre o sistema portuário, e controle é algo bem diferente de gestão. Quando se trata de gerir um setor produtivo inserido no ambiente de negócios, a iniciativa privada é mais eficaz, por ter características básicas compatíveis: autonomia, flexibilidade, agilidade e efetividade na mobilização dos recursos humanos. Não há como esperar igual desempenho da gestão pública. O próprio presidente Lula expôs, em diversas ocasiões, sua dificuldade de mobilizar a máquina estatal para fazer avançar programas de governo.

Interesse particular é algo que existe em todo indivíduo e o poder público é exercido por indivíduos, razão pela qual não está imune à manipulação por grupos privados. Por outro lado, o governo tem meios legais, contratuais e regulatórios para coibir práticas anticompetitivas e qualquer outro tipo de abuso cometido contra o interesse público. O verdadeiro interesse público só pode ser preservado quando há equilíbrio e transparência no jogo de forças entre Estado e setor privado, e quando cada um realiza a sua vocação. O papel do governo não deve ser o de gestor, mas sim o de indutor do desenvolvimento, servindo-se para isso dos poderes de regular e fiscalizar, além de atuar como agente financiador em empreendimentos de interesse estratégico.

Aqueles que pretendem ressuscitar o mito do porto público alegam que a crise econômica desmoralizou o modelo do mercado autorregulador. Justamente, uma das lições aprendidas é a de que não se pode prescindir da regulação estatal, desde que exercida de forma equânime e motivadora do desenvolvimento. Talvez por isso mesmo, para o Estado passar a exercer com maior eficácia o seu poder regulador - que consiste, por assim dizer, no seu core business - é desejável que o governo abra mão das funções de operador e gestor e construa um novo modelo de administração portuária, autônoma, descentralizada, integrada ao CAP e aberta à participação do setor privado. 
Wilen Manteli é presidente da Associação Brasileira dos Terminais Portuários (ABTP)

RUY CASTRO

Tarde de conspiração


folha de são paulo - 13/03/10RIO DE JANEIRO - Do outro lado do pátio, eu podia ver Carlos Lacerda, com um prato na mão, deslocando-se de grupinho em grupinho, de empresários, escritores, jornalistas, e dizendo algo que, à distância, não era possível ouvir. Estávamos numa quinta perto de Lisboa, e o ano, 1973, vinha sendo sacudido por uma série de sismos internos no governo de Marcelo Caetano, o homem que sucedera o ditador Salazar, morto três anos antes.
Eram abalos políticos quase imperceptíveis para nós, brasileiros residentes em Portugal, e para 99% dos portugueses. Mas Lacerda estava vindo a Lisboa com uma frequência suspeita, quase todo mês. Eu sabia disso porque ele era amigo de pessoas na revista em que eu trabalhava e ia sempre à redação. E, quando Lacerda se mexia muito, algo estava para acontecer. Com seus direitos políticos cassados no Brasil pelos militares que ele ajudara a pôr no poder, dizia-se que pensava usar Portugal como trampolim para voltar à política.
Alguém dera um almoço em sua homenagem na tal quinta, e lá estava eu, de xereta. O homem não sossegava ao redor do pátio. A cada parada, era aquele bzzz bzzz bzzz no ouvido das pessoas -no mínimo, tramava uma alta conspiração. E começou a se aproximar do grupinho onde eu estava.
Por que estou me lembrando disso? Porque alguém me perguntou qual político eu gostaria de biografar e respondi na lata: Carlos Lacerda. Mas avisei logo que não iria fazer isso. Acho impossível escrever uma biografia de Lacerda em menos de cinco anos, e não pretendo mais passar tanto tempo casado com um biografado.
Lacerda se aproxima do meu grupo. Traz o prato na mão e os olhos meio de louco. Oba, vem aí uma fofoca das brabas! -pensei. Chega-se a nós e sussurra, com ar triunfante: "Essa dobradinha está genial!".