quinta-feira, dezembro 16, 2010

MÍRIAM LEITÃO

Em causa própria 
Miriam Leitão 

O Globo - 16/12/2010

Um Congresso que não consegue ter um relator para o Orçamento aprova um aumento salarial de 62% para os parlamentares e de 130% para ministros e presidente da República. Este é o resumo desse final de legislatura. O Orçamento está no terceiro relator e os três enfrentam o mesmo tipo de dúvidas: emendas que beneficiam entidades às quais estão ligados seus parentes ou assessores.

Qualquer aumento de salário de parlamentar vai sempre provocar reações na opinião pública, mesmo quando forem justificáveis. Mas, no caso, o Brasil desconhece reajustes de preços em percentuais tão altos desde que derrubou a hiperinflação. Nenhum trabalhador conseguiria seu objetivo se pedisse reajuste de 60% a 130%.

Os deputados e senadores brasileiros têm vários outros benefícios dos quais a imprensa tem falado com frequência. Auxílios para transporte, para correspondência, verba de representação, benefícios frequentemente usufruídos de forma ilegítima. Tantas notícias sobre os desvios no uso dessas verbas, e os escândalos, foram esgarçando a confiança dos eleitores nos deputados e senadores. Aí, no final de uma legislatura tumultuada, quando não se sabe se haverá relatoria para o Orçamento, os deputados aprovam um decreto legislativo legislando em causa própria, dos ministros, da próxima presidente e, indiretamente, para deputados estaduais do país todo. No mesmo dia, numa agilidade desconhecida em outras matérias, o Senado também aprova o projeto. Fazem neste 15 de dezembro por truque, e não por falta de tempo. Logo virá o recesso e, no ano que vem, assumirá novo Congresso. Esse, que está velho, ficará com o desgaste. A aposta geral é que a reclamação não virá porque será esquecida nas festas de fim de ano.

Melhor é que o Congresso tivesse argumentos para defender o reajuste dos seus salários no início da Legislatura. Pior é a maneira como se faz: a 15 dias do fim do ano, vota-se que o tema é “urgente” e, em seguida, aprovase o mérito em votações simbólicas, porque assim não se sabe quem votou ou deixou de votar. A tese para justificar o aumento também não faz sentido algum: a de que é para que todos tenham “isonomia” em relação aos ministros do Supremo Tribunal Federal. Eles, por sua vez, estão com novos pedidos de aumentos para o Judiciário também na casa dos 50%, num país em que 5% é inflação alta. O risco de um reajuste com esse motivo é de novo consagrar aquela corrida do passado. Na hiperinflação, os funcionários do Banco do Brasil pediam aumento alegando que era para ter isonomia com os funcionários do Banco Central. Aí os funcionários do Banco Central conseguiam outro aumento e começava de novo a rodada.

O Orçamento chegou ao Congresso inchado e com receitas superestimadas, o Congresso está elevando ainda mais os gastos, criando novas receitas fictícias para cobrir emendas de parlamentares. O presidente Lula avisou que o governo terá que cortar despesas. Em parte por culpa do presidente que deixa o cargo em duas semanas, que permitiu uma gastança espantosa neste último ano em que pagou qualquer preço — com o dinheiro dos contribuintes — para garantir a eleição da sua candidata. O novo governo tomará posse com um orçamento de faz de conta, isso se houver tempo de aprovação da peça orçamentária.

O Congresso passou o ano inteiro com mais sessões suspensas do que realizadas, por causa da campanha, e ontem aprovou com uma rapidez impressionante um aumento salarial para si mesmo. Fatos assim estão minando a relação com os representados. Ao contrário do que os políticos gostam de dizer, esse desgaste não é causado pela ausência de uma reforma política e sim pelo mau comportamento dos parlamentares. Que tivessem a coragem de explicar e justificar o reajuste, que votassem no tempo regulamentar, que convencessem a sociedade da necessidade do aumento e que cada congressista votasse com seu rosto e nome. O inaceitável é que os políticos tomem uma decisão polêmica em votação simbólica, em regime de urgência, na penúltima semana da Legislatura. Votam como se estivessem prontos para, em seguida, fugir do flagrante.

Um sinal assustador ronda essa Legislatura, nesta queda em dominó de relatores do Orçamento: o da suspeita de estarmos diante de um novo escândalo como o dos anões do Orçamento. Em 1993, descobriu-se um esquema de fraudes em emendas parlamentares que beneficiavam uma sucessão de deputados e foi o início de uma CPI que terminou em cassação de mandatos. Desta vez, o senador sem voto — mas com amigos — Gim Argello foi o primeiro a renunciar ao ser atingido pela suspeita de ter apresentado emendas ao orçamento para beneficiar empresa de um filho. Em seguida, diante da primeira suspeita sobre a senadora Ideli Salvatti, ela também renunciou ao cargo. A senadora Serys Slhessarenko foi atingida quando se descobriu que sua assessora Liane Muhlenberg é diretora de uma ONG beneficiada por uma emenda. A senadora disse que nada sabia, que foi traída pela assessora, mas ontem a “Folha de S.Paulo” lembrou que há oito meses em entrevista ao jornal a senadora demonstrou conhecer os vínculos de sua assessora com a ONG.

O presidente Lula disse que na democracia é assim mesmo: escolhe-se um parlamentar, depois se houver algum problema, é só tirar e procurar outro. Banaliza mais uma vez o mau comportamento . Após três problemas sequenciais, o que será que se deve fazer com o Orçamento? Provavelmente deixar a aprovação para o ano que vem, porque os parlamentares têm algo mais relevante: aumentar os próprios salários.

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