quarta-feira, dezembro 08, 2010

MERVAL PEREIRA

Dois comandos
MERVAL PEREIRA
O GLOBO - 08/12/10


O presidente Lula chegou à perfeição, dá ordens no seu governo, que está chegando ao fim, e no de Dilma Rousseff, que nem mesmo começou. Indicou mais da metade do Ministério, e o ministro Guido Mantega, que é e continuará sendo o titular da Fazenda, está experimentando a estranha sensação de ter dois chefes.

Um dia, ele anuncia que os cortes serão drásticos e não pouparão nem mesmo obras do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), a galinha dos ovos de ouro da presidente eleita, Dilma Rousseff.

Certamente não falou isso sem o consentimento dela. Mas ambos esqueceram-se de combinar com Lula, e deu no que deu.

O presidente, que já demonstrou, por palavras e obras, que não está se sentindo muito confortável com o fim de seu "reinado", desautorizou seu ministro, que também é ministro do futuro governo.

Lula garante que a próxima presidente não terá necessidade de cortar "nenhum centavo" das obras do PAC, a menina dos olhos de seu governo.

É a situação mais esquizofrênica de que já se teve notícia na política brasileira.

Mantega, na atual administração, é um ministro gastador, responsável pela mudança de orientação que resultou na busca de um crescimento do PIB que superasse a média de 3,5%, considerada o teto para a economia brasileira ficar protegida da inflação.

Ainda no Ministério do Planejamento, e depois no BNDES, Mantega defendia a tese de que o PIB potencial brasileiro era mais próximo de 5% e pautou sua atuação à frente da Fazenda, quando substituiu Antonio Palocci na crise da quebra de sigilo bancário do caseiro Francenildo Pereira, na busca desse crescimento sem inflação.

Na crise internacional de 2008, não colocou obstáculo à política de Lula de estimular o consumo interno para enfrentar a ameaça de depressão econômica e aderiu de corpo e alma aos estímulos fiscais para animar o mercado interno.

Ao mesmo tempo, o BNDES passou a ter papel relevante no financiamento de empresas, diante da falta de crédito no mercado internacional. E passou a ser a principal fonte de direcionamento de política econômica, escolhendo setores e empresas.

O superávit primário foi reduzido ao mínimo possível, e os gastos do governo foram acelerados, mais para financiar salários, pensões e programas assistenciais do que para investimentos.

O crescimento do PIB deste ano, que deve estar por volta de 7%, é uma demonstração viva de que a política expansionista deu certo, ajudando o país a enfrentar a crise internacional de maneira exitosa.

Mas também trouxe de volta o fantasma da inflação, e por isso, ainda no governo Lula, várias medidas estão sendo tomadas para contê-lo.

Os efeitos serão sentidos apenas no próximo governo, e talvez por isso o presidente não tenha se incomodado tanto.

As medidas de restrição do crédito tiveram também a intenção, tudo indica, de evitar que a última reunião do Banco Central na administração de Henrique Meirelles, e, sobretudo, a última do governo Lula, decretasse o aumento da taxa de juros.

A questão foi jogada para a frente, quando teremos que ver na prática o que significam as palavras do futuro presidente do Banco Central, Alexandre Tombini, que ontem, na sabatina na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, repetiu um mantra que poderia ter saído da boca de Meirelles: "Taxas elevadas de inflação têm efeitos nocivos sobre a economia e perversos sobre a renda da população, em particular sobre segmentos de renda mais baixa."

Ora, manter a inflação em níveis baixos, embora um assunto técnico, sempre teve um caráter político no governo Lula justamente porque a inflação alta afeta a base de apoio popular do presidente.

Deve-se ao então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, o feito de ter convencido o presidente Lula desse efeito nocivo da inflação sobre qualquer projeto de melhoria da capacidade de consumo das classes mais baixas.

A partir daí, qualquer outro objetivo está subordinado ao controle da inflação.

Mesmo o descontrole de gastos dos últimos dois anos foi feito com um acompanhamento técnico da área econômica, que deve ter medido até que ponto o governo poderia chegar para ganhar a eleição sem perder o controle da situação.

A contenção de custos agora anunciada certamente já era de conhecimento da candidata Dilma Rousseff, mas não podia ser alardeada na campanha eleitoral.

Aliás, esta e outras medidas e posições surgidas após a vitória nas urnas demonstram que a campanha eleitoral de pouco serve para que se saiba como vai governar este ou aquele candidato.

Suas juras e promessas são mais falsas que as de amantes de bolero.

Veja-se o caso da presidente eleita. Após a vitória nas urnas no segundo turno, fez um discurso de estadista e calou-se, atitude, aliás, das mais sensatas.

Abriu a boca oficialmente para o "Washington Post" e, na entrevista, deu pistas fundamentais sobre seu próximo governo, ensaiando inclusive um ligeiro distanciamento do governo de seu preceptor em questões de política externa.

Um distanciamento nem tão grande que pareça um rompimento, mas também não tão tímido que não sugira a possibilidade de um voo solo, pelo menos em questões sensíveis como os direitos humanos.

Resta ainda saber a amplitude dessa mudança, mas já existe uma expectativa de haver vida própria no próximo governo, e não apenas a repetição enfadonha de gestos e movimentos ditados pelo manipulador dos cordéis.

Talvez por isso Lula tenha sentido a necessidade de dar palpite público sobre um assunto que só diz respeito ao próximo governo.

Resta saber se ele fez isso porque ainda está no comando ou se está querendo continuar no comando depois do dia 1º de janeiro de 2011.

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