sexta-feira, novembro 12, 2010

ROGÉRIO L. FURQUIM WERNECK

Dilma e Cristina
ROGÉRIO FURQUIM WERNECK
O GLOBO - 12/11/10



O primeiro grande desafio da política macroeconômica da presidente Dilma Rousseff será a restauração da credibilidade da política fiscal.

Não se trata apenas de reverter o quadro de deterioração fiscal que se instalou nos últimos dois anos. É especialmente importante que o governo se comprometa a não recorrer mais a truques contábeis que têm trazido descrédito às contas públicas, solapando uma reputação de confiabilidade duramente construída ao longo de mais de 20 anos. Não há como levar a sério a política macroeconômica, se as contas públicas oficiais já não espelham a real evolução do quadro fiscal do País.

Em meio a uma transição de governo que deverá transcorrer sob o signo da mais tranquila continuidade administrativa, lidar com esse desafio pode ser um problema mais complexo do que parece, pois o que se faz necessário, na área fiscal, é uma quebra marcada e inequívoca com o que vem sendo observado no segundo mandato do presidente Lula.

O desafio traz à mente uma situação similar que ajuda a lançar luz sobre as dificuldades que poderão estar envolvidas. Ao longo de 2006, o governo Néstor Kirchner tentou de todas as formas pressionar a instituição responsável pelo cômputo da taxa oficial de inflação na Argentina a adulterar os cálculos. As pressões culminaram na intervenção do governo no INDEC (Instituto Nacional de Estadística y Censos) no início de 2007. Meses depois, em dezembro de 2007, Cristina Fernández de Kirchner, eleita sucessora de Néstor Kirchner, tomou posse como presidente da Argentina.

No período que antecedeu à sua posse, discutiu-se a possibilidade de que a presidente eleita aproveitasse a transição de governo para restaurar a credibilidade do índice oficial de inflação. A verdade, no entanto, é que, pesados os prós e contras, no seu intrincado cálculo político, Cristina Kirchner preferiu deixar passar a oportunidade. E, em pouco tempo, à medida que seu próprio governo também se envolveu na adulteração dos índices de preços, os custos políticos do abandono dessa prática se tornaram proibitivos.

A Argentina permanece até hoje com a condução de sua política macroeconômica comprometida pela completa falta de credibilidade dos dados oficiais de inflação.

O episódio é altamente instrutivo.

O que prevaleceu na decisão de Cristina Kirchner foi a resistência a uma mudança brusca e ostensiva que pudesse expor e desgastar o antecessor.

Mas há diferenças importantes entre as duas situações. Na decisão com que agora se depara Dilma Rousseff, há espaço para uma mudança mais sutil, que seja inequivocamente convincente, mas menos ostensiva do que a que Cristina Kirchner teria de fazer em 2007. A Dilma Rousseff, bastaria agora entregar a condução

da política fiscal do novo governo a um ministro que sabidamente não compactue com os padrões de gestão que prevaleceram nas finanças públicas nos últimos dois anos.

Teria de ser alguém, claro, que não pudesse ser associado às iniciativas que redundaram, de um lado, na rápida deterioração do regime fiscal no segundo mandato de Lula e, de outro, nas patéticas tentativas de escamotear tal deterioração. E não há como tapar o sol com a peneira.

Na escolha do novo ministro da Fa-zenda, teriam de ser evitados nomes do eixo Fazenda-BNDES, diretamente envolvidos na concepção e implementação das medidas que trouxeram inegável descrédito à política fiscal nos últimos anos.

Tais nomes padecem de limitações básicas. Por razões óbvias, nem mesmo reconhecem que esteja havendo deterioração do quadro fiscal. E insistem que não há nada de errado, nem nas colossais transferências do Tesouro ao BNDES, nem nos truques contábeis que transformam emissão de dívida bruta em melhora de superávit primário. Não têm, portanto, condições de comandar o esforço de restauração de credibilidade que se faz necessário.

Com a escolha de seu ministro da Fazenda, Dilma Rousseff vai demarcar a importância efetiva que afinal decidiu dar a esse esforço. Não precisa incorrer no mesmo erro de Cristina.



ROGÉRIO FURQUIM WERNECK é economista e professor da PUC-Rio.

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