domingo, novembro 28, 2010

MÍRIAM LEITÃO


O manto do silêncio
Míriam Leitão
O GLOBO - 28/11/10

Eu posso explicar atos extremos cometidos por jovens durante a ditadura. Os que, naquela época, tomaram o poder empurraram os jovens para corredores estreitos que não levavam a outro caminho que não a radicalização ou omissão. O que não posso entender é como hoje, quatro décadas depois, se queira impedir o acesso à informação sobre aquele passado sob que pretexto for.

Pessoas que jamais fariam o que fizeram foram sendo envolvidas na lógica da radicalização. Mesmo os que não pegaram em armas, não entraram nos grupos mais radicais de guerrilha urbana ou rural, sabem da engrenagem do absurdo. Uma ditadura faz isso. Ela fecha portas a quem quer participar da política e influir nos rumos nacionais. A maioria se abstém; uma parte não está convencida de que haja possibilidade de fazer alguma diferença, os mais convictos querem fazer algo e, dentre eles, os mais afoitos acabam cometendo atos que os jogam no meio de uma guerra. Eles nada disso fariam se o governo não estivesse dominado por um poder ilegítimo e repressor como o que tivemos aqui de 1964 a 1985.

Há uma diferença entre os que, na oposição, praticaram atos que, aos olhos de hoje, são condenáveis, e os que dentro do aparelho do Estado torturaram e mataram. Os primeiros são vítimas; os outros, algozes. Assim é e assim será, mesmo que haja casos de vítimas inocentes atingidas pelos dois lados. Nada justifica a ditadura. Nenhum argumento da época ou de hoje é sólido o suficiente para abonar atos condenáveis como as cassações políticas, perseguições, tortura e morte de opositores políticos. Como definiu Ulysses: "a sociedade foi Rubens Paiva e não os facínoras que o mataram."

A presidente eleita participou desse confronto em que de um lado havia o terror de Estado e do outro um grupo reduzido de jovens. Alguns deles foram mais longe, pegaram em armas, se militarizaram, entraram em confronto físico, morreram ou viram seus amigos morrer. Ela diz que se orgulha desse passado, não deve ter medo de discuti-lo e explicá-lo às novas gerações. É natural que o Brasil queira conhecer a história da presidente que nos vai governar por quatro anos. Interromper esse debate por ato de censura, como foi o do Superior Tribunal Militar, no período pré-eleitoral, ou agora, sob a acusação de que toda aquela informação é lixo, é entrar numa contradição insanável. Quem tem orgulho do seu passado, quem acha inclusive que merece ser indenizado por ele, não pode impedir que ele seja conhecido de forma objetiva e completa. Não pode impor um roteiro edulcorado do passado, sob pena de criar mitos, versões falsas, manipular os fatos.

Todos os que eram jovens naquela época gostam hoje de se creditar pelos riscos que apenas alguns correram. Uma das verdades é esta: foram poucos os que tiveram coragem e conhecimento do que realmente se passava no país. Era difícil até obter a informação que levava os jovens à ação - armada ou não - contra o regime. A falsificação sufocante e majoritária era de um "país que vai pra frente"; a cobrança comum era de que toda crítica ao governo era um ato impatriótico. O país crescia no milagre dos anos 1970. Era mais fácil acreditar apenas na informação onipresente de que o governo estava certo e o presidente era muito popular porque era torcedor de futebol. A bolsa subia, o país estava com pleno emprego, e os poucos que chegavam à universidade tinham enormes chances. Sobre a vasta exclusão não se falava nos órgãos de imprensa, ou por censura ou por decisão editorial. Esperto era ser individualista, ganhar dinheiro e esquecer aqueles fatos incômodos levantados por alguns poucos de que o país estava num caminho inaceitável.

Ficou no imaginário popular a beleza das manifestações de 1968. Mas aquilo foi por pouco tempo e no momento mais suave do regime. Depois, veio o Ato Institucional número 5. Em seguida, o terror de Estado. Quem subia em palanques para lutar com palavras foi empurrado para a radicalização. Quem foi o culpado pelo radicalismo? Ora, os comandantes militares e seus cúmplices civis que tinham o controle do Estado e usaram todas as instituições para sufocar qualquer contestação.

Esse era o contexto. Não se pode julgar os jovens militantes de esquerda daquele tempo com os olhos de hoje. Estou convencida de que se, diante das manifestações de 1968, o regime tivesse reagido dialogando não haveria o que houve.

Hoje, 40 anos depois, o país tem que olhar para esse passado sem vetos. Nunca peguei em armas, mas posso entender quem o fez, porque vi o contexto e sei para onde o terrorismo de Estado empurrava os que, em vez de pensar só em si e nas suas carreiras, tinham vontade de influenciar os destinos do país. Mesmo que estivessem errados em suas convicções, estavam certos na atitude de se opor à ditadura. E foram os mais corajosos.

As novas gerações têm que olhar e debater esse passado. Há quem se pergunte se informações retiradas sob tortura podem ser publicadas. É uma dúvida legítima. Mas a imprensa - como tem feito em algumas matérias - está ouvindo de novo as testemunhas dos fatos, e, quando elas hoje confirmam o que disseram, qual é a justificativa para não publicar? Manter a versão única de quem hoje detém o poder é aceitar de novo a censura.

Não há nada que justifique o manto do silêncio sobre o passado, como esse país fez tantas vezes com vários dos eventos históricos. Só a História resgatada e conhecida pode ensinar o país a não repetir os mesmos erros.

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