segunda-feira, novembro 08, 2010

CELSO MING

'É complicado economia forte com moeda fraca' 
Celso Ming 
O Estado de S.Paulo - 08/11/2010


Um dos mais celebrados economistas do mundo, Stanley Fischer tem três recados a respeito do desdobramento da crise global: (1) A atual guerra cambial é parte do processo que repassa para o mundo o ajuste da crise financeira; (2) é melhor para todos pagar parte do preço e ajudar os Estados Unidos a retomar o crescimento do que vê-los afundar na estagnação; (3) é muito difícil pretender uma economia forte com moeda fraca, como quer o governo do Brasil.
Nascido na Zâmbia em 1943, Fisher era professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT) quando foi orientador da tese do atual presidente do Federal Reserve (banco central dos Estados Unidos), Ben Bernanke. De 1994 a 2001, foi a segunda autoridade do Fundo Monetário Internacional (FMI). Assumiu a presidência do Banco de Israel (banco central) há cinco anos. Em outubro, foi considerado o melhor presidente de banco central do mundo pela revista Euromoney.


Esta entrevista foi concedida na sede do Banco de Israel, em Jerusalém, no dia 30, a jornalistas do Estado, Organizações Globo e jornal Valor Econômico.

Como um governo pode garantir competitividade a seus setores produtivos num ambiente de abundância de capitais e forte valorização cambial?

Israel também está enfrentando esse problema. Queremos uma economia forte com moeda fraca. E isso é complicado. Quanto mais robusta for a economia do Brasil, quanto mais for reconhecida por suas riquezas com gás e petróleo e tanta coisa, mais difícil será evitar a valorização cambial.

Como esta guerra cambial vai evoluir e como vai atingir os países emergentes, entre os quais o Brasil?

Países que tiveram de aumentar os juros, mas que conseguiram sair rapidamente da crise, estão atraindo capitais e enfrentando intensa valorização cambial. Durante muito tempo me explicaram que um banco central não deve intervir no câmbio, porque essas coisas não funcionam. Aqui em Israel, preferimos não intervir, mas aprendi que nunca devemos dizer nunca. Em todo o caso, você intervém, aumenta as reservas para evitar excessiva valorização cambial, aí as reservas ficam grandes demais e então você pergunta o que mais pode fazer. Vocês, no Brasil, decidiram-se pelo aumento do IOF. Nós, em Israel, preferimos medidas pontuais regulatórias.

O que os Estados Unidos têm de fazer para sair da crise e como isso vai atingir os emergentes?

O governo dos Estados Unidos não dispõe de muitas ferramentas. Têm, sim, os instrumentos fiscais, mas o déficit orçamentário americano está grande demais. E os mecanismos monetários acionados pelo Federal Reserve (Fed, o banco central americano) também chegaram ao limite: os juros básicos estão entre zero e 0,25 ponto porcentual ao ano. Não dá para baixá-los mais. Sobra o afrouxamento monetário quantitativo (anunciado na quarta-feira pelo Fed). No fundo, o problema principal consiste em saber como distribuir a conta do ajuste e se os mercados estão em condições de distribuí-la bem. A outra questão é o que vai fazer a China. Se mantiver seu câmbio atrelado ao dólar, um peso maior do ajuste será descarregado sobre os demais países. Mas vai ser assim? Não sei.

Há outra maneira de considerar o problema. Há a hipótese A, em que os EUA adotam os mecanismos de afrouxamento quantitativo, inundam o resto do mundo com capitais e provocam excessiva valorização cambial, mas retomam o crescimento, todos podem voltar a exportar para eles. E há a hipótese B, em que os EUA não fazem nada, não há essa enorme pressão sobre os mercados de câmbio, mas o crescimento econômico americano se mantém baixo por muito tempo. Eu prefiro a hipótese A. A gente tem de trabalhar com os instrumentos que tem. A situação ideal é aquela em que todos os países colaboram no ajuste, incluindo a China. Prefiro que os EUA saibam o que fazer para voltar a crescer.

A China vai acatar sua parte da conta?

Há uma boa possibilidade de que permita que o câmbio se ajuste mais rapidamente. Mas ninguém espere que deixe flutuar as cotações.

Pode essa guerra cambial desembocar numa guerra comercial?

Temos sempre de ser contra as guerras comerciais e contra os protecionismos. Ao longo de todas as crises que ocorreram depois da Segunda Grande Guerra, os protecionismos felizmente não prosperaram. Prevaleceu a liberação do comércio, porque os países entenderam que protecionismo e guerra comercial são ruins para todos. Enfim, estou preocupado, sim, com guerra comercial, mas este não é o primeiro item da minha lista de preocupações. Tenho uma longa lista de preocupações. Sou pago para ter preocupações.

Como os países sem moeda própria, como os da área do euro, que não podem manejar o câmbio, podem garantir competitividade para seus produtos?

Os alemães usaram os recursos que estão nos livros de texto. Os salários deixaram de crescer mais rapidamente. Trabalharam para ajustar os preços relativos. É difícil conseguir esse grau de disciplina. Outro caminho são reformas estruturais, que também são difíceis de aprovar, como os casos das reformas previdenciárias da França e da Grécia acabam de mostrar. Existem ainda medidas pontuais, como regulações e coisas assim. Mas não há muito o que fazer. No caso europeu, medidas fiscais também são problema, porque os déficits são grandes demais.

Quer dizer que moeda comum é uma encrenca em tempo de crise?

Economistas, amigos meus, estão dizendo isso. Mas se esquecem de que, no tempo em que tinham moeda própria, esses países também enfrentaram problemas. Eles desvalorizaram o câmbio e provocaram inflação, como se desvalorização e inflação fossem vantagens. Foi disso que se livraram agora, se livraram do problema de a cada quinze anos terem de desvalorizar o câmbio, de provocar inflação e de, em seguida, não desembocar em nenhum lugar seguro. A conclusão é a de que o essencial é garantir disciplina fiscal. Nessa hora, é bom olhar para os países que têm de se ajustar sem poder contar com o recurso da manipulação do câmbio.

A crise consagrou o princípio de que bancos grandes demais não podem falir. Mas isso aponta para futuras irresponsabilidades bancárias. Como evitar isso?

A questão mais importante não é o que fazer com os bancos grandes demais para falir. É o que fazer para que bancos grandes se tornem impossíveis de falir e, assim, evitar o pânico. Em teoria, a gente sabe como lidar com um banco quebrado e evitar problemas. Na prática, as coisas são diferentes, como vimos quando da quebra do Lehman Brothers. E, quando se trata de um grande banco global, fica tudo mais complicado, porque as leis são diferentes de país para país.

Boa parte desse problema não está acontecendo porque os bancos são cada vez mais globais e, no entanto, os bancos centrais que os supervisionam não passam de instituições locais?

Bancos centrais são, por definição, nacionais, exceto o da área do euro. Por ocasião da quebra do Lehman Brothers, países como França, Holanda e Bélgica não lidaram adequadamente com algumas consequências e isso está sendo agora levado em conta na elaboração de um conjunto de regras destinadas a enfrentar casos parecidos no futuro. As discussões se concentram sobre se um grande banco deve ter filiais (por ele controladas) ou subsidiárias (que atuam independentemente) e sobre a qual banco central entregar a supervisão. Os especialistas que estão trabalhando nesses temas no Conselho de Estabilidade Financeira (no âmbito do G-20) me disseram que há pouco progresso, porque esses assuntos são complexos demais. O Citigroup e o HSBC estão em mais de 100 países.

Até que ponto avançaram os estudos para acertar um novo acordo monetário global?

Estamos muito distantes disso. Foram esses mesmos problemas, com o câmbio e com o equilíbrio do sistema internacional, que provocaram o acordo de Bretton Woods e a fundação do FMI, em 1944. E foram essas também as razões pelas quais o acordo de Bretton Woods acabou, no início dos anos 70. A grande volatilidade das cotações do dólar e do euro não é o problema principal, porque os dois lados são economias relativamente fechadas, em que o peso do comércio exterior no PIB é pequeno. Mas, no caso de Israel, que exporta entre 40% e 45% do PIB, o problema é mais sério. O sistema internacional não tem um método para obter equilíbrio; não tem um conjunto de regras para intervenções nos fluxos de capital porque elas interfeririam no comércio. O FMI está começando a pesquisar o que pode e o que não pode ser feito.

Parte do problema não se deve à falta de poder do FMI de impor regras (enforcement) aos governos?

As agências internacionais lidam com esse problema. A única instituição que tem bons mecanismos de enforcement é a Organização Mundial do Comércio (OMC). A ONU é fraca porque seus membros não a querem forte. Temos de lidar com o fato de que os países não querem abrir mão de soberania. Esse é o problema também do FMI. O caminho é a persuasão. Quando, por exemplo, o FMI entender melhor como funciona o câmbio será mais ouvido.

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