quarta-feira, outubro 13, 2010

ROLF KUNTZ

A virtude castigada
Rolf Kuntz
O Estado de S. Paulo - 13/10/2010

O ministro da Fazenda, Guido Mantega, alertou para a deterioração das contas externas de vários países emergentes e em desenvolvimento, durante a reunião do Fundo Monetário Internacional (FMI), na semana passada. O alerta foi parte de sua pregação contra a desordem no sistema internacional de câmbio, por ele descrita como guerra cambial. Há quem discorde da palavra guerra, mas o ministro, como observou o financista George Soros, não está longe da verdade. Há pelo menos um começo de hostilidades. Os mais prejudicados, até agora, são países sem a mínima responsabilidade pela crise global, como o Brasil, a Colômbia e outros sul-americanos.

O pouco dinamismo da economia global tem dependido dos emergentes. Os latino-americanos têm feito a sua parte. Seu crescimento em 2010 está estimado em 5,7%, mais que o dobro da expansão calculada para os países mais desenvolvidos, 2,7%. O descompasso entre as economias tem-se refletido nas contas externas. As importações dos países mais prósperos têm aumentado mais velozmente que suas exportações. No caso do Brasil, isso já ocorreu nos meses finais de 2007 e ao longo de 2008. O superávit comercial encolheu e, em seguida, o superávit nas transações correntes converteu-se num buraco.

A piora das contas externas ocorreu na maior parte das economias latino-americanas. No caso da América do Sul, o déficit em transações correntes, estimado em 1% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2010, deve chegar a 1,4% no próximo ano. Os números ainda não são alarmantes, mas a tendência é perigosa. No caso do Brasil, o cenário é mais feio. O buraco na conta corrente deve ficar em 2,6% do PIB em 2010 e crescer para 3% em 2011, segundo as contas do FMI.

Essa mudança é atribuível a vários fatores. O primeiro é a diferença entre as taxas de crescimento econômico dos latino-americanos e dos países mais desenvolvidos. O mercado está mais estreito no mundo rico e a competição é mais dura. Em contrapartida, a relativa prosperidade dos emergentes e em desenvolvimento amplia sua demanda de importações. Isso é especialmente sensível em países - como o Brasil - onde o aumento de renda dos trabalhadores e a expansão do crédito elevaram o consumo. Cerca de dois terços das importações brasileiras são de bens de consumo e de bens intermediários (destinados, na maior parte, a produtos para o consumidor).

O segundo fator é a valorização cambial. Os emergentes passaram pela crise sem estragos notáveis. Quase todos foram afetados, de alguma forma, pela turbulência internacional, mas seu desempenho foi bem melhor que o dos países mais avançados e dos ex-socialistas da Europa Oriental. Essa menor vulnerabilidade é facilmente explicável: resultou principalmente dos ajustes promovidos nos anos 80 e 90. Os velhos críticos das políticas de estabilização parecem não haver notado esse detalhe. Além do mais, o setor bancário desses países foi pouco afetado pelo estouro da bolha imobiliária. No caso do Brasil, os padrões de segurança adotados a partir dos anos 90 funcionaram como um cinto de castidade para as instituições financeiras.

Todos esses fatores bastariam para atrair capitais. No caso do Brasil, o tamanho da economia, seu impulso de crescimento e os juros elevados funcionaram como atrativos irresistíveis. A política monetária frouxa no mundo rico, particularmente nos Estados Unidos, tem produzido uma inundação nos mercados monetários. O problema tende a agravar-se, porque o banco central americano continuará comprando títulos públicos em circulação, na tentativa de estimular o crédito. Isso realimentará o fluxo de capitais para o mundo emergente.

Essa dinheirama jogada no Brasil e em vários outros países tem reforçado a valorização do real e de várias moedas, tornando os produtos desses países mais caros que os estrangeiros e, portanto, menos competitivos. A China tem escapado desse problema, graças à manipulação cambial. Condições políticas e econômicas diferenciadas permitem ao governo chinês esse tipo de política. Como consequência, o maior país superavitário contribui bem menos do que poderia para o reequilíbrio global, enquanto os Estados Unidos espalham dólares pelo mundo.

Nenhum país pode resolver esse problema isoladamente, mas não há sinal de esforço coordenado. O governo brasileiro vem tentando soluções unilaterais, como a tributação de capitais especulativos. Ações desse tipo tendem a perder a eficácia em pouco tempo. Seria mais seguro reduzir os juros, mas para isso seria necessário conter a expansão do gasto público. Seria possível, também, eliminar vários fatores prejudiciais à competitividade, todos bem conhecidos, a começar pela tributação de baixa qualidade. Quem pode apostar em qualquer dessas iniciativas?

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