quinta-feira, setembro 02, 2010

RENATO DAGNINO


Ajustando o debate universidade-empresa

RENATO DAGNINO
FOLHA DE SÃO PAULO - 02/09/10



Nossa política de C&T tem que ser revisada, inclusive sobre arranjos institucionais inócuos, como incubadoras, parques e polos tecnológicos

No artigo "Recursos privados favorecem universidade" (28/7), Meneghini se opõe ao expresso em "Universidade, mecenato e mercado", de Antunes e Correia (2/7), ambos publicados neste espaço. Embora, ao contrário do que ele escreve, o debate seja eminentemente "ideológico", vou mostrar evidências empíricas (a-ideológicas?) para ajustar seu foco.
Elas tratam da importância dos recursos alocados pela empresa à realização de atividades universitárias que Meneghini chama de "pesquisa de interesse recíproco" -da universidade e da empresa-, visando "criar tecnologia de ponta".
Como ele se refere à realidade estadunidense, tomo-a também para embasar dois argumentos. O primeiro é que lá, ao contrário do que se divulga, a empresa não vê essas atividades como interessantes.
De fato, do total gasto em P&D (pesquisa e desenvolvimento) empresarial, somente 1,3% é alocado para elas, e o que é captado por essa via custeia apenas 1% do recurso envolvido com o funcionamento da universidade. Não há informação sobre quanto a empresa "brasileira" (estatal, privada, multinacional) aloca para essas atividades. Há informação para a Unicamp, que, como se sabe, se destaca pela sua competência em conhecimento de interesse da empresa e pela vocação para dela se aproximar. Nela, essa proporção é semelhante à média estadunidense: 1,4%.
Essas evidências já permitem ajustar o foco. Primeiro, porque a meta de aproveitar o que faz a universidade para o desenvolvimento do país dificilmente se dará pela via da "pesquisa de interesse recíproco". Portanto, nossa política de ciência e tecnologia (C&T) tem que ser urgentemente revisada, inclusive quanto a arranjos institucionais inócuos, como incubadoras, parques e polos tecnológicos.
Há que orientá-la para atender a "interesses recíprocos" mais abrangentes do que os do seu ator até agora hegemônico: a comunidade de pesquisa das ciências duras.
Segundo, porque há que se entender o que leva os pragmáticos governantes dos EUA a apoiar maciçamente a pesquisa universitária se seus resultados não são apropriados diretamente pela empresa.
Sua resposta, bastante simples, permite introduzir meu segundo argumento: no Brasil, a política de C&T não afeta a empresa.
Para fazer P&D e ser competitiva nos mercados de alta tecnologia, a empresa dos EUA precisa de pesquisadores. E, até que se descubra meio mais eficaz, eles continuarão a aprender a fazer pesquisa nos caros laboratórios universitários.
É por isso que, lá, a empresa contrata para P&D cerca de 70% dos mestres e doutores que se formam a cada ano. E no Brasil? Em 2011, formaremos quase 30 mil mestres e doutores em ciências duras.
Nas empresas, onde a regra é a importação de tecnologia (principalmente a incorporada em equipamentos), cerca de 3.000 se dedicam a P&D. Supondo um aumento de 10%, haverá demanda de 300 no ano que vem. Ou seja, cerca de 1% dos que estarão disponíveis (!), como ocorre nos EUA, para fazer P&D.
Essa disfuncionalidade levou os formuladores de políticas a incorporar bolsas ao já generoso pacote de subsídios às empresas, para que mestres e doutores nelas trabalhem. Lá, pagos pelo Estado, usam os conhecimentos adquiridos com as atividades de ensino e pesquisa da universidade pública (cópias, aliás, das estadunidenses).
Adicionalmente, como uma canhestra "compensação" que agrava o produtivismo-cientificista, subsidiam a universidade para que produza patentes.
É claro que essa disfuncionalidade da política de C&T não invalida o que Antunes e Correia levantam a respeito da "possibilidade de comprometimento da missão" da universidade, do fato de sua agenda de docência e pesquisa estar "a serviço do mercado", e não dos "rumos que (o país) pretende, estrategicamente, pesquisar".
RENATO DAGNINO, mestre em economia do desenvolvimento e doutor em ciências humanas, é professor titular de política científica e tecnológica da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

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