sexta-feira, junho 18, 2010

RAPHAEL CARNEIRO DA ROCHA FILHO

Presidente pode tudo?

 Raphael Carneiro da Rocha Filho
O Globo - 18/06/2010
 
 O presidente da República pode tudo? Como primeiro mandatário da nação, decerto que ele pode muita coisa mesmo — mas não tudo. E por que não? Porque o presidente, como servidor público que é, só pode fazer aquilo que as leis (expressão da vontade do povo, por seus representantes eleitos) dizem que ele pode. Este imperativo decorre do princípio constitucional da legalidade, que determina que o agente público, seja ele qual for, se subordine, no exercício de suas funções, aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum. Isto é próprio dos estados democráticos de direito, como o Brasil.
É por isso que o povo exige, na Constituição que adotou, que o presidente eleito, ao tomar posse, preste o compromisso de manter, defender e cumprir o Contrato Social e observar as leis da República.
Tomamos esta sábia exigência da tradição democrática americana.
Mas a que vem tudo isto? Vem a propósito de dois atos recentes e mal pensados do presidente, a saber: o mau acordo nuclear celebrado com o Irã (que não cuidou de evitar que Teerã continue a enriquecer urânio com fins militares) e o dissonante e desastroso voto, no Conselho de Segurança, em favor da liberdade atômica dos aiatolás.
Salvo o presidente Lula e seu assessor especial de política externa, Marco Aurélio Garcia, ninguém de boa-fé duvida das reais intenções do Irã atual. É geral, nas democracias ocidentais, a crença de que os fanáticos religiosos que lideram aquele país buscam, a passos decididos e ousados, dispor de armas nucleares de destruição em massa.
Daí a preventiva resolução do Conselho de Segurança — que contou, inclusive, dentre os votos a favor das salvaguardas, com os de Rússia e China, aliados tradicionais do Irã. Choca, pois, o agir do presidente, já que, como bem anotou o colunista Merval Pereira, “apoiar o Irã, uma ditadura teocrática completamente fora das leis internacionais e do respeito aos direitos humanos, é um absurdo. Não é possível aceitar que o presidente, qualquer que seja ele, possa usar o país para aventuras pessoais” (O GLOBO, 10/06).
Pois bem. A nossa Constituição expressa (art.4º) que, nas suas relações internacionais, o Brasil rege-se pelos princípios (VII) do repúdio ao terrorismo (que é patrocinado, como é notório, pelos aiatolás radicais); (VI) da defesa da paz (seriamente ameaçada pelo projeto iraniano de expansão militar, centrado na conquista de armas nucleares); e (VII) da solução pacífica dos conflitos (que o voto do Brasil contrariou, ao repudiar a solução pacífica e preventiva encontrada, na ONU, pela comunidade internacional). Ora, estes são princípios fundamentais da República, que têm eficácia jurídica, o que importa na sua aplicabilidade imediata e direta, vale dizer, eles obrigam o agente público/político.
Portanto, ao praticar tais atos em favor de uma ditadura religiosa radical, belicista, que almeja o confronto nuclear, repudiando injustificavelmente a resolução preventiva adotada pelo concerto das nações, o presidente agiu objetivamente contra a Constituição que jurou cumprir e defender, traindo, assim, a vontade do povo brasileiro nela encerrada.
Em que pese o seu desapreço pelas leis — revelado pela sua quinta condenação pela Alta Corte Eleitoral — o presidente, que as pesquisas indicam gozar da estima da ampla maioria da população, precisa ter mais cuidado com os superiores interesses, fora do comércio, cuja séria gestão lhe foi delegada nas urnas — até porque os atos desastrosos que presidiu comprometeram a dignidade da Nação (bem indisponível), já agora objeto de escárnio em sedes diversas, como tem sido amplamente noticiado, para humilhação dos brasileiros.
Do contrário, estará se expondo, em tese, à gravíssima responsabilização capitulada no art. 85 da Carta Magna, cuja efetivação poderia significar, no limite, a sua destituição, por patrocínio infiel, do nobre mandato que lhe foi outorgado.
Com efeito, em 1787, já alertava o grande Alexander Hamilton, um dos pais fundadores da América, em obra que é patrimônio da humanidade, que “não há posição fundada em princípios mais claros que aquela de que todo ato de um poder delegado que contrarie o mandato sob o qual é exercido é nulo. Portanto, nenhum ato legislativo (ou executivo) contrário à Constituição pode ser válido. Negar isto seria afirmar que o delegado é maior que o outorgante; que o servidor está acima do senhor; que os representantes do povo são superiores ao próprio povo; que homens que atuam em virtude de poderes a eles confiados podem fazer não só o que estes autorizam, mas o que proíbem”.

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