sexta-feira, junho 18, 2010

MÍRIAM LEITÃO

O descompasso 
Miriam Leitão 

O Globo - 18/06/2010

Os juros vão continuar subindo nos próximos meses porque o Banco Central acha que há um descompasso entre a capacidade de produção das empresas e o ritmo do consumo. Este é o recado dado nas entrelinhas da ata da última reunião do Copom. Há outros recados que confirmam que Banco Central e Ministério da Fazenda pensam bem diferente.

O ministro Guido Mantega disse que a economia está desacelerando naturalmente.

O Banco Central acha que há um “virtual esgotamento da margem de ociosidade” das empresas.

Abril deu razão a Mantega e caíram vendas de carros e diversos outros indicadores da economia. Maio deu razão ao Banco Central e como este jornal mostrou aqui na terça-feira subiram a produção de carros, o fluxo de caminhões pesados nas estradas, o consumo de energia, a produção de papelão ondulado.

O consumo também continua forte. Mesmo no mês de abril, a associação dos shoppings registrou um crescimento das vendas de 18% em relação ao mesmo mês do ano passado.

A inflação dá mais razão ao Banco Central. Está já acima da meta em doze meses.

O IPCA nos cinco primeiros meses do ano já chega a 3,09%. É mais de dois terços da meta de 4,5% para o ano todo. Mas nas últimas medições a inflação começou a desacelerar como a Fazenda disse que ocorreria.

A Fazenda acha que essa alta foi pontual, de sazonalidade.

Naquela linguagem sisuda, o Banco Central discordou. Disse que as previsões se deterioraram “independentemente de contribuições pontuais e sazonais para a elevação dos preços ao consumidor.” Para o economista José Júlio Senna, da MCM Consultores, a ata mostra que há dois desvios que precisam ser corrigidos com aumento de juros: o PIB, que está crescendo num ritmo que produz inflação; e as expectativas para a inflação de 2011, que já estão acima da meta.

— Com esse dois fatores presentes, o Banco Central vai continuar subindo juros.

Está muito claro pra todo mundo que a economia está bastante aquecida e com uma inflação de demanda — explicou Senna, que prevê a Selic em 12,75% no final do ano, com aumentos de 0,75 ponto em todas as próximas reuniões do Copom.

O BC está preocupado com a alta utilização da capacidade instalada. Cita como exemplo o setor da construção civil.

De acordo com dados da Abramat (Associação Brasileira da Indústria de Materiais de Construção) nos últimos quatro meses a utilização da capacidade do setor permanece em recorde histórico: 87%. O presidente da entidade, Melvyn Fox, afirma que a demanda continua forte no segundo trimestre, puxada por incentivos do governo, expansão do crédito e renda das famílias.

— Tivemos aumento no faturamento de 20% no primeiro quadrimestre e devemos fechar o ano com alta de 15% — afirmou.

Na crise de 2008 os empresários adiaram investimentos.

A Fazenda acha que é só esperar um pouco a maturação de projetos feitos agora que vão aumentar a capacidade de produção.

Ainda olhando para a construção civil, em maio de 2009 apenas 33% das empresas planejavam investir.

Hoje, a taxa sobe para 71%.

— Com a maturação desses investimentos, acho que o NUCI (índice de uso da capacidade instalada) do setor cairá para 75% em dezembro — aposta Fox.

Vários analistas disseram ontem que o resumo da ata é que os juros continuarão a subir. A Tendências aposta no mesmo ritmo de aperto nas próximas reuniões. A Prosper Corretora prevê aumento dos juros mesmo com queda na inflação nos meses de junho e julho. A Ativa corretora diz que a ata reforça a tese do superaquecimento e prevê juros em 13% no final do ano.

Outro ponto importante no texto de ontem foi a avaliação da crise europeia.

O BC disse que a crise reduz o ritmo da demanda global e que pode haver uma “retomada lenta e desigual.” Isso foi entendido no mercado assim: se não houvesse crise, os juros teriam subido mais ainda, talvez em um ponto percentual na última reunião.

Mas que ninguém espere muita delicadeza do Banco Central. Como alertou o professor Luiz Roberto Cunha, da PUC-Rio, o BC está atento aos desdobramentos da crise, mas não acredita no cenário de “stress”.

Ou seja: os juros continuarão subindo.

— O Banco Central diz que o cenário externo piorou e isso pode ajudar no combate aos preços, mas ao mesmo tempo afirma que um agravamento dessa crise não é o seu cenário básico.

É bom explicar também que a crise na Europa teria um efeito deflacionário, mas por razões ruins: queda da atividade no mundo e redução dos preços das commodities — explicou.

A Fazenda teme que a elevação exagerada dos juros reduza o crescimento além do necessário. O Banco Central escreveu que inflação alta reduz o horizonte das empresas e das famílias, diminuindo investimento e consumo. Portanto, sua estratégia é elevar os juros para manter o crescimento. Pensando bem, a palavra “descompasso” define não só o que acontece entre oferta e demanda, mas entre os dois lados do governo.

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