sábado, maio 08, 2010

RUY CASTRO

Vida na rua
RUY CASTRO

FOLHA DE SÃO PAULO - 08/05/10

RIO DE JANEIRO - Era uma livraria na rua Dias Ferreira, no Leblon. As bancadas dos livros tinham sido recrutadas entre os móveis e utensílios de uma tipografia de 1900, com os tipos de chumbo transbordando dos caixotins, as pilhas de clichês velhos, as amarras, as ramas, os componedores e até uma guilhotina -objetos incompreensíveis para a maioria dos clientes e, ao mesmo tempo, tão a propósito: talvez tivessem ajudado a compor e imprimir os tataravôs dos livros novos, de história, urbanismo e artes gráficas, especialidades da casa.
A dois quarteirões dali, um sebo, o mais charmoso do Rio nos últimos 20 anos, e também cheio de bossa: grande literatura em várias línguas, fotos de craques do passado nas paredes, um gato preto chamado Zulu e sempre alguém interessante folheando alguma coisa. Certa noite, ouvi quando a bonita mulher de um diretor de televisão, olhando intrigada para as estantes, comentou: "Que engraçado! Quanto livro velho!".
Já faz tempo que nenhum dos dois existe mais. A livraria é hoje um laboratório de análises químicas, campeão em biópsias e exames de urina. O sebo tornou-se uma butique ou confecção -uma grife. O inconveniente é que, enquanto a livraria e o sebo ficavam abertos até tarde, acolhendo os livrescos notívagos e solitários, seus sucessores encerram às 6, com dia claro, e condenam boa parte de seus quarteirões ao escuro e ao nada.
O mesmo acontece quando fecha um cinema de rua e, com ele, evaporam-se da calçada o pipoqueiro, a fila, a paquera bem-sucedida, o reencontro de amigos e a oportunidade do convívio social onde ele melhor se realiza: no amplo espaço público. Você dirá que, para cada livraria, cinema ou loja de discos que fecha, abre uma pizzaria, um sushi-viagem ou um yogoberry.
Desculpe, mas não acho que seja a mesma coisa.

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