sábado, maio 29, 2010

ROBERTO POMPEU DE TOLEDO

REVISTA VEJA
Roberto Pompeu de Toledo

O fantasma se diverte

"O que o fazia sorrir, em Teerã, era a suspeita de que estavam 
de volta os bons tempos. O presidente do Brasil não ia se meter
de graça numa encrenca como a do Oriente Médio"

Não deu para ver, como todos os fantasmas ele era invisível, mas havia um fantasma naquela cena triunfal de mãos dadas e braços ao alto, em Teerã, irmanando o presidente Lula, o iraniano Mahmoud Ahmadinejad e o turco Tayyip Erdogan. Os mais afoitos sugerirão que o fantasma era o próprio acordo. Ao concordar em ter o urânio enriquecido em outro país, e em seguida acrescentar que nem por isso deixaria de continuar a fazê-lo ele próprio, o Irã entrou nos anais com um caso raro, talvez inédito, de comprometimento simultâneo com uma coisa e seu contrário. Não. O fantasma em questão é outro. Atende pelo nome de Garrastazu de Almeida. Nelson Rodrigues chamou de Sobrenatural de Almeida o fantasma que costumava plantar-se sobre as traves nos jogos do Fluminense. Este é o Garrastazu de Almeida. Estava invisível, mas muito feliz e sorridente, na brecha aberta entre os braços erguidos de Lula e Ahmadinejad.
Em atenção aos jovens: Emílio Garrastazu Médici foi presidente do Brasil entre 1969 e 1974, durante a ditadura militar. Comandou o país no período mais duro, de censura à imprensa, repressão às atividades políticas e tortura nas prisões. Nada a ver com os dias atuais, de liberdades democráticas. Mas, no outro lado da moeda, era o tempo do "Brasil Grande", como se dizia. O país crescia de 8% a 10% ao ano, o consumo alcançava níveis nunca antes vistos neste país, a bolsa de valores batia recordes, o governo investia em grandes obras, como a Transamazônica e a Ponte Rio-Niterói. A euforia estampava-se no dístico "Brasil, ame-o ou deixe-o", exibido nos vidros dos carros. O próprio presidente proferiu uma frase que virou música de sucesso: "Ninguém segura este país". O Brasil parecia ter chegado lá.
Ainda em atenção aos jovens: como se pode constatar, o clima atual de "estamos chegando lá" não é inédito no país. Já ocorreu no governo Médici, como ocorrera no de JK. É antes fenômeno de eterno retorno do que de "nunca antes neste país". Mas o que fez o Garrastazu de Almeida particularmente feliz, na cerimônia de Teerã, foi que o assunto em pauta eram armas atômicas. Quando ele era vivo, e se chamava Emílio Médici, não se contentou com o milagre econômico. Ansiava por um Brasil potência. Nuclear, de preferência. Em seu governo foi anunciada a compra de uma usina atômica, a ser montada em Angra dos Reis. O Brasil recusava-se a assinar o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares. Já não bastasse a histórica rivalidade, vivíamos um grave contencioso com a Argentina em torno da construção da hidrelétrica de Itaipu. Não se falava abertamente, mas tudo levava a crer que caminhávamos em direção à bomba.
O que fazia o fantasma sorrir, em Teerã, era a suspeita de que estavam de volta os bons tempos. Ora, como podia ser de outra forma? Claro que o presidente do Brasil não ia se meter de graça, só pela compulsão ao marketing, numa encrenca do tamanho da do Oriente Médio. Claro que a diplomacia brasileira, que não é boba, não ia na conversa iraniana de que seu programa nuclear tem fins pacíficos. Conclusão: o Brasil agia em função de seu próprio projeto. O que estava contestando era o direito de uma só potência, ou um grupo de potências, determinar quem pode e quem não pode ter a bomba. A leitura do episódio pelo fantasma ia além. Se o Brasil vem investindo, com insistência sôfrega e pedinchona, em obter um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, precisa acumular cacife para isso. Não há membro do Conselho de Segurança que não tenha a bomba. Por que não nós? Por quê? O fantasma exultava.
Não se ignora no além-túmulo que muita coisa mudou, do regime militar para cá. O Brasil é agora signatário do Tratado de Não Proliferação e as relações com a Argentina evoluíram para a aliança e a colaboração, inclusive nos respectivos programas nucleares. Até foi inscrito na Constituição de 1988 que "toda a atividade nuclear em território nacional somente será admitida para fins pacíficos". Mas… E o nosso peso específico? E a nossa projeção de poder? (O fantasma assimilou o jargão que nos indica o caminho da grandeza.) O atual vice-presidente já declarou que é a favor de o Brasil ter a bomba atômica. Precisamos proteger nosso patrimônio, ele disse. Temos um imenso território, um extenso mar territorial… Temos o pré-sal!
Garrastazu de Almeida saiu satisfeito de Teerã. Voltou feliz para Porto Alegre. Como o Sobrenatural de Almeida, ele gosta de futebol, e costuma frequentar as traves do Grêmio. Ainda leva um velho radinho de pilha.

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