quinta-feira, maio 06, 2010

BRASIL S/A

Terra de ninguém
Antonio Machado

CORREIO BRAZILIENSE - 06/05/10

Deputados ignoram a lei ao favorecer aposentadorias sem dizer como pagar o gasto e desafiam Lula


No ano de eleições gerais, na semana do décimo aniversário da Lei de Responsabilidade Fiscal e no dia em que o presidente Lula saíra de Brasília para mais uma das frequentes e ociosas cúpulas com os vizinhos da América do Sul, sabendo que deixava questões muito mal-encaminhadas na política, os deputados puseram para quebrar.

Com apoio de todos os partidos governistas — ostensivo, no PMDB, dissimulado, no PT —, alinhados aos da oposição, a Câmara aprovou projetos que fazem a alegria instantânea dos segurados do INSS e, a médio prazo, fraturam a delicada situação da Previdência, ameaçam as próprias aposentadorias e comprometem a estabilidade fiscal.

Os brasileiros passaram 10 longos anos para alcançar a relativa responsabilidade fiscal — a fundação sobre a qual se ergue o ainda incipiente e em construção processo de crescimento sustentado. Os deputados precisaram de 2 horas para começar a rachá-la.

O governo propusera reajustar os benefícios acima de um salário mínimo em 6,14%, retroativos a 1º de janeiro e equivalentes à soma da inflação pelo INPC de 2009, com 50% do aumento do PIB de 2008.

Já era uma liberalidade. Pela regra vigente, a variação integral do PIB de dois anos atrás, acrescida à inflação, é obrigatória só para as aposentadorias e pensões de até 1 mínimo. A Câmara fez mais.

Esticou o aumento real para 7,7%, que corresponde à variação de 80% da expansão do PIB de 2008, na medida provisória com a qual Lula propunha a correção. Ele guardara para o ano das eleições o agrado aos aposentados. Até então, se ativera à letra da lei.

Confiante em sua popularidade para abafar qualquer autonomia da amplamente majoritária coalizão que formou na Câmara e no Senado, Lula esperava, com sua proposta, dois resultados. O primeiro, o mérito das medidas em favor dos aposentados — fruto de iniciativas do senador Paulo Paim (PT-RS) sem o aval do governo, mas com o apoio da oposição. E segundo, limitar o prejuízo para as contas nacionais.

Perdeu duplamente: a movimentação do líder do governo na Câmara, deputado Cândido Vaccarezza, do PT, explicitou a contrariedade de Lula. Vaccarezza ainda tentou baixar a perda para o Tesouro com a sugestão de um reajuste de 7%. Foi atropelado pelo próprio PT.

A bancada foi liberada a votar como quisesse. Nem do PT Lula teve apoio. Ele armara o circo com a colaboração das centrais sindicais chamadas para sugerir a impressão de consenso pelo aumento menor — e foi surpreendido pela emenda do deputado Paulo Pereira (PDT-SP), presidente da Força Sindical, propondo o reajuste maior, de 7,7%.

Lula piscou. E perdeu
No fim, ao ficar claro que o governo perdera a direção na Câmara, ratificando a percepção de constrangimento de Lula em desarmar as articulações do senador Paim, no Senado, visando relaxar as regras previdenciárias, todas aprovadas sem sequer um protocolar puxão de orelhas, os deputados governistas recrudesceram.

O DEM ainda quis tirar casquinha, propondo um aumento de 8,7% só para fazer bonito diante dos aposentados. Não foi preciso chegar a tanto, já que, com o governo inerte, a coalizão governista avançou e derrubou, também com apoio de grande parte do PSDB, DEM e PPS, o fator previdenciário. Criado em 1999 no governo FHC, é um redutor para penalizar aposentadorias precoces. Foi outro golpe no INSS.

A quanto irá o rombo
Não estão bem avaliadas as perdas que tais decisões implicam para o INSS, e obrigatoriamente financiadas pelo Tesouro, sobretudo se o Senado ratificar o fim do fator previdenciário. Acumuladas, e se a Justiça reconhecer o efeito retroativo para todos os aposentados pela regra derrubada na Câmara, pode chegar a 5% do PIB — quase R$ 175 bilhões, segundo estimativas de técnicos da Câmara.

Com uma fração disso, o governo teria lançado um programa decente de apoio às exportações, não o pacote desidratado anunciado, que inclui a criação do Eximbank ligado ao BNDES menor do que seria, e a regularização só parcial da devolução dos créditos tributários.

Governo deu o exemplo
Outra vez se comprovou que se o país, apesar dos desatinos, ainda vai para frente, só pode ser porque Deus é brasileiro. É assim, se faltar o exemplo das prioridades. Problema não é o que a Câmara e o Senado fizeram pelos aposentados. É fazê-lo à revelia da lei, que manda indicar a fonte orçamentária para novos gastos, ou despesas a cortar, se insuficiente. Lula sinaliza que vai vetar tais ações. Isso depois de relançar a Telebrás ao custo talvez subestimado de R$ 13 bilhões em cinco anos para prover banda larga. Aí é difícil.

Telebrás versus INSS?
A história é exigente: o que não se faz no tempo certo adiante se fará a um custo muito maior. Lula abandonou, depois que se reelegeu, a idéia de reformar a Previdência, certo de que o deficit atuarial poderia esperar, e o de caixa, o crescimento econômico resolveria.

Estava certo em parte: o crescimento tem levado à formalização do emprego e, assim, a mais receita. Ao congestionar as prioridades, dando vazão à fortuna fiscal, porém, alertou os políticos para a suposta fartura e a outros projetos. Agora, está com um pepino na mão: contrariar os aposentados, vetando os benefícios, ou deixar o deficit inchar. E isso quando se dispõe a gastar bilhões de reais para recriar a Telebrás. É o que dá quando se perdem as medidas.

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