quarta-feira, março 17, 2010

MERVAL PEREIRA


Ganância futura
O GLOBO - 17/03/10

Este nosso arremedo de Guerra de Secessão, com choro e ranger de dentes tipicamente tropicais, pode se transformar em uma crise política grave se o governo do Estado do Rio não agir seriamente, como não fez até agora.

Não ajuda nada o comentário sarcástico do deputado Ibsen Pinheiro, autor do projeto que reduz drasticamente o pagamento de royalties aos estados produtores de petróleo, dizendo que estado produtor “no máximo tem uma vista para o mar, que é muito privilegiada”.

Por outro lado, vamos e venhamos, cassar a Medalha Tiradentes dada ao deputado gaúcho, considerandoo persona non grata ao estado, beira o ridículo.

Melhor seria que a Câmara dos Vereadores zelasse pela escolha de personalidades que recebem a condecoração, valorizando-a, em vez de distribuí-la a torto e a direito.

Não se discute que cortar bruscamente o pagamento dos royalties do petróleo para o Rio de Janeiro, quase inviabilizando a economia do segundo maior estado brasileiro, coloca em risco o conceito de Federação, incluindo um componente deletério no relacionamento entre os estados.

Nem sempre a maioria pode tudo.

Mas o fato é que a posição do Rio não é tão segura assim como querem fazer crer as autoridades fluminenses, e é preciso mais do que protestos para que se chegue a bom termo na negociação.

A alegação de que o projeto de lei fere o artigo 20 da Constituição, que prevê a compensação aos estados produtores, não é tão irrefutável assim.

Segundo o caput do artigo 20, entre os diversos bens da União, estão os recursos naturais da plataforma continental.

Já o parágrafo 1º do mesmo artigo estabelece que: “É assegurada, nos termos da lei, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios, bem como a órgãos da administração direta da União, participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais no respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, ou compensação financeira por essa exploração.” Há interpretações desse texto que entendem que os estados e municípios têm direito à compensação ou participação pela exploração apenas nos respectivos territórios, e a União pela exploração na respectiva plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva.

Entre 1953 e 1968 só havia indenização da Petrobras aos estados e municípios pela produção em terra.

A União nada recebia dessa produção.

A partir de 1969, a União passou a ser indenizada pela produção marítima. As participações especiais pela exploração de petróleo existem apenas desde 1997, com a Lei do Petróleo, sancionada nove anos depois da Constituição.

A partilha de royalties de mar com estados e municípios é de antes da Constituição, de uma legislação de 1985. Essa legislação estabeleceu o critério de confrontação com base em projeções para definir a distribuição dos royalties para estados e municípios, que até aquela data eram apenas da União.

No entanto, mesmo que se interprete, como fazem o governo do estado do Rio e do Espírito Santo, que a União deve compensar estados e municípios pela exploração do petróleo em altomar, a forma de compensação depende de legislação ordinária, e é por isso que ela está sendo alterada por um projeto de lei complementar, e não por emenda constitucional.

Não há nenhuma obrigatoriedade constitucional de repassar 60% a estados e municípios, como ocorre hoje, nem de privilegiar nessa distribuição os estados e municípios confrontantes, conceito que sequer aparece na Constituição.

Os especialistas que são favoráveis à mudança ressaltam que a utilização de projeção marítima para delimitação da plataforma entre os estados para fins de distribuição dos royalties não torna a plataforma continental território de estado A ou B.

Basta a legislação alterar o tipo de projeção utilizada (ortogonal por paralela) para alterar o resultado da divisão da plataforma continental entre os estados.

É o caso do campo de Tupi, que, pelas projeções ortogonais, pertence à área do Rio de Janeiro, mas com paralelas pertenceria à área de São Paulo, como aliás queria o senador Aloizio Mercadante, para favorecer seu estado.

A infração a contratos seria apenas aos que já estão em andamento, mas mudanças futuras podem ser feitas para renovação dos atuais contratos e para os novos, como aliás pode ser alterada a legislação fiscal, desde que negociada no Congresso.

Uma reforma tributária, se chegasse a bom termo, alteraria a cobrança de tributos sem que pudesse ser considerada uma quebra de contrato.

O problema para os estados produtores é que a maioria esmagadora dos estados chegou a um consenso na Câmara sobre o pagamento dos royalties do petróleo.

Como não há nenhuma razão para se mudar os critérios de interpretação da legislação que está em vigor, a não ser a ganância por um tesouro que ainda está para ser explorado, é lícito classificar de covardia a alteração imposta pela maioria.

Mas será preciso muita negociação para que os estados produtores não saiam desse episódio com um prejuízo irrecuperável.

O governador Sérgio Cabral, que conduziu muito mal a negociação congressual, irritandose excessivamente no primeiro momento e chegando às lágrimas quando o estado foi atingido pelo corte de recursos, tem que tomar cuidado para que a passeata de hoje não se transforme em um tiro no pé.

Nos bastidores, é preciso que o governador se empenhe em negociações realistas, provavelmente abrindo mão de alguma vantagem futura para garantir o que o estado já tem, e não confie tanto na suposta amizade que o presidente Lula e sua candidata Dilma Rousseff devotam ao Rio e a ele pessoalmente.

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