segunda-feira, março 01, 2010

JOSÉ ROBERTO R. AFONSO

A omissão condenada

O ESTADO DE SÃO PAULO - 01/03/10



O
Supremo Tribunal Federal (STF) tomou uma decisão unânime, no dia 24 de fevereiro, que produzirá efeitos muito relevantes para o federalismo fiscal e mesmo para a economia, sem contar a inovação em torno dos pedidos de inconstitucionalidade. Espantosamente, a maioria das autoridades, dos analistas e da mídia não atentou para tal fato.

A decisão envolve a forma como atualmente é distribuído o Fundo de Participação dos Estados (FPE) entre as 27 Unidades federadas. Em poucas e simples palavras, aquela Corte decidiu que no máximo até o final de 2012 poderá continuar sendo adotada uma tabela (anexa à Lei Complementar nº 62 de 1989) que "congelou" o seu rateio em 27 cotas.

A citada lei previa que tais coeficientes fixos seriam aplicados em caráter provisório, apenas até 1991. Porém, o Congresso Nacional nunca votou a matéria e, passados mais de 20 anos, o STF decidiu que tal situação só poderá prosseguir até o ano de 2012. (Também reconheceu que a suspensão imediata deixaria os Estados sem receber o FPE e com danos graves às finanças.)

Na prática, o STF mais do que julgou inconstitucional uma parte da lei, condenou a omissão do legislador em deixar de regulamentar um comando fundamental para a Federação.

A Constituição determina que o FPE seja repartido entre os Estados (como o Fundo de Participação dos Municípios - FPM - entre os municípios) segundo "critérios de rateio..., objetivando promover o equilíbrio socioeconômico", fixados em lei complementar. Nem é preciso recorrer a análises jurídicas ou fiscais. Basta a gramática para saber que uma tabela, com porcentagens fixas, que nunca muda, não se trata de um critério de rateio. Se esse critério havia, era político na essência.

Basta recorrer aos anais parlamentares para ler na justificativa da proposição e nos pronunciamentos da votação do correspondente projeto de lei que tal tabela foi acordada no Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz). Foi arbitrado, dentre outros aspectos, que 85% do fundo caberia aos Estados do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste, enquanto 15% caberiam ao Sul e ao Sudeste, e que a cota-parte de São Paulo seria reduzida para 1%, para elevação da cota de alguns dos outros, relativamente ao que era aplicado até então.

As razões para tal arbitragem remontam à Assembleia Constituinte: quando instalada, o FPE recebia 14% da arrecadação do Imposto de Renda (IR) mais Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). No início, uma subcomissão elevou essa fatia para 18,5%, mas limitou o rateio apenas para as Unidades com renda per capita inferior à média nacional. Depois, a comissão temática aumentou de novo a repartição para 21,5% e eliminou qualquer restrição no rateio, e assim ficou até a Carta promulgada.

Portanto, a disputa regional determinou uma maior descentralização de recursos (depois atenuada pela política federal de explorar cada vez mais contribuições não-compartilhadas) e balizou a cota que caberia àquelas três regiões (arredondando 18,5% por 21,5%).

Retrocedendo um pouco mais, menciona-se que o FPE foi criado em meados dos anos 60 com verdadeiros critérios de rateio. Era redividido segundo três parâmetros: superfície (5%), população (47,5%) e inverso da renda por habitante (47,5% do total).

Algum redirecionamento já aparecia na concepção do fundo para beneficiar as Unidades menos populosas e menos desenvolvidas (por acaso, dos governos mais fiéis à ditadura militar): por exemplo, nenhum Estado contaria como tendo menos de 2% da população nacional - beneficiaria 15 Estados atualmente - e nenhum poderia ter mais do que 10% - penalizaria os dois maiores. Nos anos 70 foi criada uma reserva para ratear 20% do fundo apenas entre os Estados do Norte e do Nordeste.

Mas esse passado serve apenas para ilustrar como já tivemos critérios de rateio, mas eles foram revogados em 1989 e não voltarão a ser aplicados depois da decisão do Supremo.

Estátua! Como uma brincadeira de criança, o FPE passou mais de duas décadas ignorando que as economias das diferentes regiões, Estados e localidades evoluíram de forma muito diferenciada, como é natural. Por exemplo, segundo o IBGE, em 1985 só duas regiões (Sudeste e Sul) e seis Estados (São Paulo, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Rio Grande do Sul, Amazonas e Santa Catarina) tinham PIB per capita acima do nacional. Isso mudou em 2007, incluindo o Centro-Oeste e alterando o conjunto de Estados (caiu Amazonas e subiram Mato Grosso, Paraná e Espírito Santo, sem contar que saltou para a liderança o Distrito Federal, com 2,8 vezes a média brasileira - superou São Paulo, com 1,56 vezes).

Expansão da fronteira agrícola e dos serviços, desconcentração da indústria, várias mudanças ocorreram na economia e na sociedade e são ignoradas pelo mecanismo que deveria fechar a equação fiscal, de forma a redistribuir recursos para os governos que podem arrecadar menos que os demais.

Novos critérios para o FPE também devem ponderar o potencial e a efetiva arrecadação direta e as necessidades de cada ente. Logo, no início dos mandatos, os futuros governadores precisarão negociar muito entre si e pressionar o Congresso Nacional para aprovar uma nova lei e, se ponderados critérios técnicos, inevitavelmente caberá repensar junto o ICMS.

Naquilo que todos sempre temeram tocar o Supremo foi muito corajoso e, ao puxar o FPE para o centro do debate político, também pode trazer junto o fio da meada da reforma tributária, tão embaralhada. Quem antes era supostamente contra mudanças de repente precisará, mais do que todos, aprovar mudanças.

Portanto, a inédita decisão do STF pode forçar o avanço da reforma que todos sabem ser necessária, mas muitos preferem se acomodar na omissão do que enfrentar a transformação.

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José Roberto R. Afonso, economista, é mestre pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutorando do Instituto de Economia da Unicamp. E-mail: contato@joserobertoafonso.ecn.br

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