sábado, fevereiro 06, 2010

J. R. GUZZO

REVISTA VEJA
J. R. Guzzo

Nosso grande amigo

"‘Não sou um indivíduo qualquer’, disse o coronel
ainda outro dia. ‘Eu sou o povo.’ A impressão
é que o governo Lula ouve essas coisas e acredita"

Considerando-se que o Brasil não pode escolher os vizinhos que tem, e que também não pode decidir como eles devem se governar, uma das perguntas que o mundo das realidades coloca no momento para o governo brasileiro é: o que fazer a respeito da Venezuela? A questão vem ao caso porque a Venezuela se transformou, para a maioria dos efeitos práticos, numa ditadura. É possível discutir seu estilo, o grau a que chegou e até o nome que lhe seria mais adequado, mas evitará grande perda de tempo, nesses casos, quem aplicar uma regra descomplicada e eficaz: regimes em que há cada vez menos liberdades públicas e privadas não podem ser chamados de democracia, e, se não podem ser chamados de democracia, só podem ser chamados de ditadura. Temos aí, portanto, uma ditadura na porta – e esse tipo de situação não ajuda o Brasil em nada, nem poderia mesmo ajudar. Regimes como o do coronel Hugo Chávez são ruins a qualquer distância. De perto ficam ainda piores.

Sendo as coisas o que são, a primeira providência a tomar diante da Venezuela é fazer o possível para viver em paz com ela; provavelmente não há prioridade maior que essa, sobretudo quando se leva em conta o perfeito desastre que seria o contrário. O segundo mandamento é não se meter, de jeito nenhum, nas questões internas da Venezuela. O Brasil, aí, simplesmente não tem de dar palpite. Não tem de dizer como deveria ser isso ou aquilo, se seria melhor fazer assim ou assado, ou se o coronel Chávez está certo ou errado. O governo brasileiro, enfim, não tem de se preocupar com a posição de países que se entendem mal com o comandante e gostariam de ver o Brasil distanciar-se dele. Basicamente, as relações entre o Brasil e a Venezuela não são da conta de ninguém mais; elas devem ser geridas de maneira a atender aos interesses brasileiros, e, de mais a mais, é o Brasil, e não os outros, que vive a situação de dividir 2 200 quilômetros de fronteira terrestre com o presidente Chávez.

E a ditadura do homem? Paciência. O mundo está cheio de ditaduras, e, se o critério para manter relações corretas com outros países fosse o teor democrático dos seus regimes, o Brasil estaria levando uma vida cada vez mais solitária. Ficaria de bom tamanho, assim, se este país se contentasse em deixar a Venezuela quieta. Mas este país não se contenta; está sempre à procura de alguma nova oportunidade para errar, e, naturalmente, sempre acha. Onde o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva está errando, no caso, é que ele se mete, sim, na vida da Venezuela – só que se mete a favor, o que é tão ruim quanto se meter contra. Ao fazer militância ativa em favor da Venezuela, a política externa do governo brasileiro não está passando à população uma mensagem de convivência civilizada com um regime em que são praticados valores diferentes dos que estão estabelecidos na Constituição do Brasil. A mensagem real diz outra coisa: diz que os valores do coronel Chávez são ótimos. Se o governo Lula não acha isso, então por que passa o tempo todo dizendo que acha?

Para o presidente Lula, por exemplo, "o que não falta na Venezuela é liberdade". Considera perfeitamente normal que o comandante Chávez mude, sem parar, todas as leis que o incomodam, ou que tire do ar canais de televisão dos quais não gosta, como acaba de fazer mais uma vez, ou que solte gangues pagas pelo governo para acabar com manifestações de rua. Não perde nenhuma ocasião, junto com os estrategistas geopolíticos que tem ao seu redor, de mostrar que Chávez não é apenas um vizinho – é um aliado, parceiro e amigo. Por que ficam tão encantados com ele? "Não sou um indivíduo qualquer", disse o coronel ainda outro dia. "Eu sou o povo." A impressão é que o governo Lula ouve essas coisas e acredita. Não seria uma surpresa se acreditasse mesmo, já que acredita, entre outros fenômenos, que a Venezuela é "um país progressista". Como assim, "progressista", se o país regride em vez de progredir? Pelas últimas notícias disponíveis, o sistema Chávez de produção socialista está fazendo faltar papel higiênico, ovos e açúcar. A inflação real pode ter superado os 30%, a economia está em recessão e o país tem duas moedas diferentes. Em vez de fazer aparecer os produtos que estão em falta, o governo estatiza a escassez; já expropriou um supermercado, assumiu a operação de uma usina de leite e ameaça com o Exército quem não fornecer ao estado, a preço oficial, os produtos que quer comprar. A energia elétrica, que já é estatal, está racionada.

Um modelo de progresso, sem dúvida.

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