terça-feira, fevereiro 09, 2010

ARNALDO JABOR

Durma-se com um pagode desses...

O GLOBO - 09/02/10

No início dos anos 60, como a política real era chata e dava muito trabalho (porta de fábrica, panfletos e, depois, coragem para morrer), nós, artistas "revolucionários", transferimos para a "Cultura" - com "c" maiúsculo - nosso sonho de mudança histórica. Iludíamo-nos com isso; o Brasil ia ser "salvo" por nós, em uma espécie de amanhecer iluminista. O presente era duro, mas o subdesenvolvimento nos santificava; nossa pobreza era uma forma de "superioridade" franciscana, mais autêntica do que os "falsos" problemas europeus, tais como a angústia do pós-guerra.

Dizíamos: "a angústia diante do absurdo é frescura de rico". A estética da fome nos enobrecia; a fome dos outros, claro.

O subdesenvolvimento era nossa única riqueza. O mundo era dividido em "centro" versus "periferia", numa espécie de bem e mal geográficos. Sentíamo-nos como mártires enfrentando o leão da Metro.

Usávamos essa divisão entre "colônia" e "metrópole" como pretexto para nos absolver e camuflar as doenças hereditárias de nossa formação, tais como: a cordialidade corrupta, o escravismo na alma, a falsa democracia. Todos os vícios de uma formação patrimonialista ficavam perdoados por nossa condição de "vítimas dos norte-americanos".

Achávamos até "bonitinha" nossa incompetência - um charme mestiço; achávamos a "doce" esculhambação brasileira quase uma forma de "originalidade" - uma poética da precariedade. O desrespeito à coisa pública era visto como atos da nossa simpática tribo de macunaímas, contra a caretice "organizada" dos países desenvolvidos - "os grandes culpados".

Falava-se de "revolução" como de Papai Noel. Não havia futuro algum para aquele janguismo mágico, coroado por frases bombásticas de Darcy Ribeiro, mas, mesmo assim, achávamos que ia rolar um socialismo dançante sem sangue, sem esforço, uma revolução doce e fácil "feita pelo governo" (até para a subversão dependíamos do Estado...). Poucos nomes nos foram tão apropriados como "esquerda festiva".

A ditadura veio como uma inevitável porrada histórica. Mas, mesmo durante a ditadura, os mais burros persistiram em seu destino de "vítimas santificadas" do imperialismo, agora confirmado pela "realidade objetiva". Falo de artistas e "nerds" porque na luta direta houve vários heróis suicidas.

Outros artistas e intelectuais aprenderam com a desgraça de 64, descobriram que o buraco é mais em cima e que não estávamos preparados para a tal "revolução".

Já tínhamos tido, é verdade, várias cepas de cultura: a antropofagia de Oswald, tínhamos tido o concretismo e seu fecundo formalismo, influenciando uma estética mais ambígua no Cinema Novo e no tropicalismo. Esses movimentos relativizaram as certezas nacional-populistas. Glauber, Caetano e Gil previram a globalização da economia. Mas, mesmo com esquematismos de um lado e complexidades de outro, a cultura brasileira continuou com um forte élan finalista, com um porto ao longe, um paraíso ao fim da linha.

Ou seja, de "esquemáticos" e "complexos", "dependentes" à Cebrap ou "onipotentes" à Iseb, continuávamos a cultivar um projeto de país, com um sebastianismo denegado. "Nova esquerda" ou "velha esquerda", tínhamos um encontro marcado com o futuro para nosso Estado-nação. Cultura precisa de esperança, mesmo se vã.

Agora, o trauma da globalização foi mais terrível para artistas e intelectuais esperançosos do que a ditadura de 64.

A ilusão de "futuro cultural" compensava nossa impotência política; agora, nem mais isso. Tiraram-nos a doce ilusão de "controle" da história e da "evolução dialética".

Estamos passando por um túnel de lixo, talvez a parte suja de uma "destruição criadora". A dor para minha geração é imensa, pois queríamos construir a utopia luxuosa de um país maravilhoso.

De repente, nos vimos como uma nação sem futuro claro e com um enorme presente de trilhões de informações banais. Começou a grande tempestade de conceitos sem rumo nos twitters e facebooks. A transcendência bateu as asas; ficamos apenas com o dia a dia; ficamos "vazios" como os norte-americanos que trabalham como formigas e cuja única utopia são o mercado e a aposentadoria. A "macdonaldização" do mundo nos tirou o charme de atores de um processo, mesmo como vítimas "exploradas". Hoje viramos fregueses de um mercado. E com a massificação geral do audiovisual, com a invasão de bagulhos culturais, com o acesso da ignorância aos "media", estamos assistindo à vitória da verdadeira cultura brasileira: o triunfo do analfabetismo democrático.

A sordidez nacional que a democracia exibe (na política e na cultura), ao mesmo tempo, nos anestesia e nos desperta (oh, contradição...). O Brasil está mais louco, mais vulgar, mais nu, mas também muito mais interessante do que há 40 anos, até porque, mesmo ignorantes, estamos mais conscientes de nossa própria chanchada. Mergulhamos nas irrelevâncias em busca de alguma resposta.

No entanto, tive um estalo: há uma nova transcendência sob essa bandalheira, uma totalidade feita de irrelevâncias.

A democracia nos trouxe uma revolução de rica vulgaridade. Temos a democratização de uma cultura de baixo consumo, um feio Carnaval que não sabemos ainda como criticar, a não ser como "brega", de nariz torcido. E temos de dormir com um pagode desses...

A verdade irônica é que nunca tivemos tanta produção cultural, de baixa extração (hélas!...), com uma euforia cretina, brutal, mas autêntica. Há uma grande "vitalidade" nesse cafajestismo cultural. Não sei em que isso vai dar, mas o futuro chegou: sujo, grosso, mas chegou. O povo se expressa, sem dirigismo nem utopias, no pleno exercício de sua sagrada ignorância. Apesar de eu estar com os cabelos em pé, no meu horror de "utópico deprimido", estamos vivendo uma verdadeira revolução cultural.

Como Orwell escreveu na ultima frase de "1984": "Finalmente, ele amava o Big Brother...". Eu também.

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