domingo, janeiro 31, 2010

ZANDER NAVARRO

Quem tem medo da democracia?

FOLHA DE SÃO PAULO - 31/01/10


Direitos humanos não se tornam práticas sociais em função de planos e leis. É o ideal democrático, quando existente, que cria direitos


O EPISÓDIO do terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos encerra outras lições, além da ruidosa polêmica recente. Sugere também existir um imenso fosso político, talvez ainda ignorado. Refiro-me à insuficiente qualidade da democracia brasileira e ao desinteresse, generalizado entre os atores políticos, em aperfeiçoá-la.
Uma ordem democrática não se define somente por diversos procedimentos instituídos, como o são, por exemplo, as eleições regulares.
Primeiro, uma "democracia realmente democrática" floresce quando anima um jogo político que gradualmente entranha mais tolerância em relação aos conflitos sociais, cuja resolução assim delimitará o espaço fundador mais decisivo da política.
Define-se também pela produção irrestrita de conhecimento e informação pelos e para os cidadãos.
Sobretudo, esse ideal democrático precisa produzir sempre diversos direitos sob processos políticos que tendem a ser evolutivos. Não por outra razão, fala-se em "gerações de direitos", uma evidência do adensamento democrático contemporâneo na maior parte das nações.
A concretização desses três eixos centrais, contudo, requer outra afirmação histórica que é rara: a crescente inclusão social, ou plebeísmo, não pode abafar, de um lado, a necessidade de assegurar o pluralismo das opiniões, decorrente da diversidade organizativa e dos interesses distintos, muitas vezes opostos; de outro, não pode constranger uma cidadania virtuosa e republicana que só o enraizamento do civismo poderá ver nascer.
Essa segunda tríade -plebeísmo, pluralismo e comportamentos cívicos, quando juntos- configura a primavera democrática e a virtualidade da sociedade ideal, sob a qual se debatem racionalmente as escolhas sociais, se impede a ditadura da maioria e se limita a manipulação opressora dos fatos.
Infelizmente, o PNDH-3, não podendo se opor à infantil estridência ideológica e ao arcaísmo político de alguns, ignorou tais premissas e permitiu o contrabando, para o texto, de várias promessas absurdas, assim iludindo até mesmo quem, em posição de autoridade, deveria denunciá-las.
Um exemplo típico é a inclusão, no plano, da exigência de audiências públicas para os processos de desapropriação de terras. Ainda que existam casos experimentais promissores, a novidade, se tornada rotineira, necessariamente ameaçará a democracia, ao contrário do que tem sido dito.
A razão é simples: a democratização brasileira, especialmente nas duas últimas décadas, observou a aceleração do plebeísmo, mas em claro detrimento do pluralismo e, especialmente, da qualidade democrática expressa no civismo. Nessa equação desequilibrada, todos perdem, pois as chances de produção da "boa sociedade" se esvaem nessa incerta trajetória na qual prevalece, sobretudo, o peso de quem grita mais -nunca a racionalidade argumentativa.
Se o sumo do plano e a ampliação plebeia devem ser saudados, com entusiasmo, pelos verdadeiros democratas, o rebaixamento das outras faces compromete o futuro político.
Nesse sentido, não é ridículo, como foi pressurosamente indicado neste mesmo espaço, acentuar que aquela proposta produz mais insegurança no campo, quando os atos de desapropriação de terras já seguem minucioso ritual legal e mais não se faz porque a demanda social por terras desabou, e não por alguma inaudita violência que caracterizaria as áreas rurais.
É falso insistir que em tais situações prevalecerá a mediação serena da Justiça, e não a força díspare derivada da mobilização de organizações políticas que hoje atuam em áreas rurais. O proprietário ameaçado, incapaz de mobilizar força social equivalente para contrapor-se, simplesmente submergirá ante o poder da maioria e a nova versão plebeia de realizar a Justiça pela vontade de assembleias, como na Grécia antiga.
Essa é a intenção contida no plano, e não apontar esse desenlace decorre de inconfessáveis objetivos. Sejamos claros: se uma autoridade ministerial foi incapaz de perceber que a correlação de forças no campo inverteu-se e a ideia das audiências espelha a vontade do MST e seus acólitos, trata-se de profundo desconhecimento sobre os processos sociais rurais ou de pueril tergiversação.
Direitos humanos não se transformam em práticas sociais em função de planos e leis. Somente são concretizados se a densidade democrática se enraizar em sua plenitude, em todos os poros da sociedade, e o delicado balanço político sugerido acima se tornar realidade. O ideal democrático, quando existente, é que cria direitos, e não o inverso. Não perceber tal fato apenas ilumina intenções subterrâneas ou algum viés autoritário daqueles que desejam mudanças sem o crivo livre dos cidadãos.

ZANDER NAVARRO, 58, sociólogo, é professor associado da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e pesquisador visitante do Instituto de Estudos sobre o Desenvolvimento da Universidade de Sussex (Inglaterra). Atualmente integra a Assessoria de Gestão Estratégica do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.

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