quinta-feira, janeiro 01, 2009

DEMÉTRIO MAGNOLI

REVISTA VEJA

Artigo Demétrio Magnoli
Começa o outono de Lula

"No fim de seu segundo mandato, seremos ‘brancos’ ou 
‘negros’ antes de sermos brasileiros. Eis aí a verdadeira 
mudança promovida pela era Lula: uma bomba social de 
efeito retardado que sua passagem pela Presidência 
deixa aos filhos e netos da atual geração"

Sergio Moraes/Reuters

SALVACIONISMO Lula em discurso: ele não enxerga nada de positivo antes
de seu próprio advento

Lula chegou ao Palácio do Planalto como a personificação de esperanças exageradas, quase ilimitadas: "Foi para isso que o povo brasileiro me elegeu presidente da República: para mudar". Na hora em que começa o outono de seu segundo mandato, contudo, é tempo de investigar a sua herança: desses oito anos, o que ficará incrustado no edifício político brasileiro?

"Eu sou filho de uma mulher que nasceu analfabeta." Antes de tudo, provou-se que diplomas acadêmicos não são adereços indispensáveis para governar. Os acertos e os erros de Lula decorrem de suas opções políticas, não das supostas virtudes ou das óbvias carências associadas a um nível baixo de instrução formal. O presidente não precisou de uma universidade para preencher a diretoria do Banco Central com um time de economistas que ostenta medalhas acadêmicas incontáveis – e concepções opostas às doutrinas econômicas petistas. Bastou-lhe o faro político privilegiado do conservador que, no fundo, nunca deixou de ser. Inversamente, o elogio da ignorância, um traço ubíquo dos pronunciamentos presidenciais, não reflete uma suposta convicção de que a escola é desnecessária, mas o egocentrismo exacerbado de um líder salvacionista.

"Nunca antes neste país." O salvacionismo abomina a história, apresentando-se como o início de tudo: a virtude que exclui o vício e escreve uma nova história num mármore intocado. A democracia enxerga a si mesma como um processo de mudanças incrementais. O líder salvacionista não enxerga nada de positivo antes de seu próprio advento. Lula é uma versão pragmática, cuidadosa e mesquinha de salvacionismo. De dia, ele denuncia "a elite que nos governa há 500 anos". À noite, cerca-se de grandes empresários, a quem atende e de quem espera retribuição. O sucesso do estilo político salvacionista deriva das fraquezas de nossa democracia – e as perpetua.

"Não se enganem, mesmo sendo presidente de todos, eu continuarei fazendo o que faz uma mãe: cuidarei primeiro daqueles mais necessitados, daqueles mais fragilizados." Lula não inventou o paralelo entre a nação e a família, que faz parte da longa linhagem do pensamento conservador de raiz autoritária. Mas, com a expansão do Bolsa Família, ele encontrou uma fórmula de modernização do assistencialismo tradicional. A distribuição direta de dinheiro, no lugar das proverbiais dentaduras, não é a fonte do aumento do consumo dos pobres, que reflete o crescimento da economia em geral e do salário mínimo em particular. Pouco importa: em virtude de sua eficácia eleitoral, o Bolsa Família será adotado pelos próximos governantes, sejam quem forem. Eis um legado duradouro da "mãe do povo".

"Não tem Congresso Nacional, não tem Poder Judiciário. Só Deus será capaz de impedir que a gente faça este país ocupar o lugar de destaque que ele nunca deveria ter deixado de ocupar." O lulismo aprofundou a subserviência do Parlamento ao Executivo, que se manifesta sob a forma de um intercâmbio: o Congresso se anula politicamente enquanto os congressistas da base do governo chantageiam o presidente para conseguir cargos e favores. A troca descamba sem dificuldades para a corrupção aberta. O "mensalão" foi isto: um projeto de estabilização da base governista pela compra direta dos parlamentares. Ele acabou exposto, mas apenas em virtude de uma fortuita ruptura interna à ordem da corrupção. Lula não caiu, apesar de tudo, e a oposição nem sequer apresentou um processo de impeachment. A elite política aprendeu do episódio que um presidente popular não será punido nem mesmo se distribuir dinheiro a parlamentares.

"Se tem uma coisa que está dando certo no governo é a política econômica. O PT não pode se esconder, procurando motivos para as derrotas, com críticas a ela." O PT morreu como partido da mudança antes da vitória eleitoral de Lula, com a Carta ao Povo Brasileiro, que o converteu em partido da ordem. Nos partidos social-democratas europeus, transições similares verificaram-se antes e de modo diferente. Eles renunciaram publicamente a seus velhos programas revolucionários, adotando programas fundados nos cânones da democracia e da economia de mercado. O PT, não: embora, na prática, sustente a ortodoxia econômica do governo Lula, suas resoluções clamam pela ruptura socialista, denunciam a liberdade de imprensa e fazem o elogio da ditadura de partido único cubana. A cisão entre o gesto e a palavra não apenas corrompe politicamente o partido como também alimenta um tipo mais virulento de corrupção.

Dida Sampaio/AE

MÁQUINA CLANDESTINA O operador do mensalão Delúbio Soares: o PT não consegue estabelecer distinções entre as instituições públicas e o partido


"Se eu falhar, será o fracasso da classe trabalhadora." Uma máquina clandestina petista, instalada dentro do Planalto, conduziu as operações do "mensalão". Militantes partidários em altos cargos públicos realizaram a quebra de sigilo do caseiro Francenildo, um crime de estado que passará impune. Se acreditamos que temos a chave do futuro e uma missão histórica redentora, não hesitamos em usar de qualquer expediente para realizar as finalidades partidárias. O PT não consegue estabelecer distinções entre as instituições públicas e o partido. No fundo, interpreta a democracia como instrumento transitório para a sua perpetuação no poder. Depois de Lula, o maior partido brasileiro continuará a figurar como elemento de distúrbio no sistema político.

"Quem chega a Windhoek não parece que está em um país africano. Poucas cidades no mundo são tão limpas." Os estereótipos raciais clássicos, afundados na lagoa do senso comum, são um componente óbvio da rasa visão de mundo de Lula. Entretanto, o programa de racialização da sociedade brasileira conduzido por seu governo decorre de um frio cálculo político. O presidente quer conservar na sua ampla coalizão as ONGs racialistas, financiadas pela poderosa Fundação Ford. Em nome dessa meta, patrocina uma enxurrada de leis raciais com repercussões na educação, no mercado de trabalho e no funcionalismo público. No fim de seu segundo mandato, todos os direitos dos cidadãos estarão mediados e condicionados por rótulos oficiais de raça. Seremos "brancos" ou "negros" antes de sermos brasileiros. Eis aí a verdadeira mudança promovida pela era Lula: uma bomba social de efeito retardado que sua passagem pela Presidência deixa aos filhos e netos da atual geração.

J. R. GUZZO


REVISTA VEJA
Ideias mortas

"Não temos um serviço público capaz de prestar
serviços ao público. Mas se há alguma coisa que
temos de sobra, em praticamente qualquer área 
da atividade humana, são ‘políticas públicas’"

Os países desenvolvidos do mundo podem estar na frente do Brasil em muita coisa, mas perdem de longe em pelo menos uma: nossa capacidade de criar "políticas públicas". Faltam ao Brasil redes de esgoto, água tratada, coleta de lixo, transporte público, portos, ferrovias e estradas asfaltadas. Faltam aparelhos de raios X em hospitais, sistemas para conter enchentes e escolas capazes de ensinar a prova dos noves. Não temos confiança em políticos, juízes e autoridades em geral. Não temos um serviço público capaz de prestar serviços ao público. Mas se há alguma coisa que temos de sobra, em praticamente qualquer área da atividade humana, são "políticas públicas", quase sempre descritas como as "mais avançadas do mundo"; é difícil entender, francamente, por que os demais 190 países que repartem a Terra conosco ainda não copiaram todas elas.

Ninguém ignora que o Brasil conta com o que há de mais moderno no planeta em matéria de proteção ao menor abandonado, direitos humanos (nossos assassinos, por exemplo, têm o direito de cumprir apenas um sexto das penas a que forem condenados), defesa do meio ambiente e legislação de trânsito. Temos o melhor modelo mundial não só de reforma agrária, mas também de reforma aquária, como nos garantiu tempos atrás o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Não há quem nos supere em leis de proteção ao trabalhador, ao deficiente físico e aos direitos do consumidor – e por aí afora, numa lista que não acaba mais. É verdade que funcionários do Incra, repartição pública encarregada de aplicar a reforma agrária, vivem sendo presos por corrupção, que os menores começam a matar gente cada vez mais cedo e que o trânsito nas grandes cidades é uma piada. Mas aí também já seria querer demais – não se pode exigir que este país, depois de toda a trabalheira que teve para montar políticas tão admiráveis, seja também obrigado a mostrar que elas produzem resultados práticos.

O ano de 2008 se encerrou com mais dois grandes momentos na história da criação de "políticas públicas" para o Brasil. O primeiro desses feitos é a Estratégia Nacional de Defesa, uma coleção de planos que vão dar ao Brasil, como nas áreas citadas acima, uma nova oportunidade de se colocar entre os países "mais avançados" do mundo. É perfeitamente correta, no caso, a ideia de melhorar o equipamento das Forças Armadas; não adianta nada dar a elas uma missão e não dar os meios. Mas, junto com providências possivelmente racionais, indispensáveis ou urgentes, vem todo um tropel de desejos tumultuados – a transformação do Brasil em potência militar, o desenvolvimento de caças de quinta geração, a criação do "soldado do futuro", taxas a ser pagas por empresas que seriam beneficiadas pela ação das Forças Armadas e até um submarino nuclear, no qual a Marinha trabalha desde 1979 e que ficará pronto, se tudo correr bem, no remoto ano de 2024. Por qual motivo o Brasil precisaria, por exemplo, de um submarino nuclear? Fala-se vagamente, em voz baixa e linguagem obscura, em "ganhos de tecnologia". Mas daí não se passa – talvez por se tratar de um segredo de estado, talvez porque não haja mesmo ninguém, no governo, capaz de explicar isso de forma coerente. O presidente Lula disse que é preciso defender a Amazônia e o petróleo das águas profundas. Muito justo, mas os principais inimigos da Amazônia, até hoje, têm sido os próprios brasileiros e seu principal problema, a pobreza, também é de criação puramente nacional; quanto ao petróleo, ninguém atacou até hoje as plataformas em alto-mar para roubar as riquezas da Petrobras, desde a perfuração do primeiro poço na Bacia de Campos, trinta anos atrás. Não há sinal de mudança em nenhuma dessas duas realidades.

O segundo grande momento foi a finalização do Plano Nacional de Cultura, que, segundo o governo, vai desenvolver as "políticas culturais" do Brasil nos próximos dez anos, com o fortalecimento da ação do estado na área cultural, "participação social" em sua gestão e outras ameaças parecidas. Mas, segundo o ministro da Cultura, Juca Ferreira, o plano se baseia em "300 diretrizes" – e a partir daí não vale a pena dizer mais nada. Não existe neste mundo projeto algum que precise de 300 diretrizes para funcionar e, caso existisse, não haveria governo capaz de aplicá-las. Não o brasileiro, com certeza.

No mais é esperar que a habitual combinação de inépcia, preguiça e burocracia da máquina estatal leve o grosso do plano para o depósito geral das ideias mortas. Nessas horas a incompetência do poder público é uma verdadeira bênção.