terça-feira, dezembro 08, 2009

JANIO DE FREITAS

Um assunto marginal

Folha de S. Paulo - 08/12/2009



A exigência do fim de arsenal nuclear e a recusa à proliferação não se excluem -são a mesma concepção e a mesma política



NA FALTA DE UMA definição mais franca da política nuclear brasileira, restrita a referências velozes e já desrespeitadas à proibição constitucional de armas atômicas, duas opiniões sobre o problema da proliferação nuclear servem como síntese da posição do governo Lula diante, inclusive, da nuclearização militar no Brasil.
A proibição constitucional, já invocada por Lula, teve a sua precariedade atestada, na prática, pela descoberta de escavações militares, em área reservada à FAB no Brasil Central, com todas as características de repositório para testes nucleares subterrâneos. E foi já no regime civil, sem explicação alguma dos militares, tudo afinal se prestando apenas à cena televisiva de Collor, recém-empossado, lançando pás de terra naqueles túmulos do bom senso.
Antes de tais escavações, israelenses já haviam procurado com militares brasileiros uma localização para pesquisas nucleares secretas. Foi dada como ideal a imensa instalação de uma fábrica de papel no interior maranhense, a nova e paralisada Cepalma, mas alguns embaraços judiciais e o vazamento do projeto, mesmo que muito estrito, sustaram a tentativa. Sem deixar indício de que sustassem também o propósito.
Nas duas ocasiões o Brasil já tinha compromissos internacionais contra seu envolvimento com armas nucleares, ainda mais fortes quando da descoberta na região do Cachimbo. Mas tratados são tratados enquanto são cumpridos.
Em sua discordância nada diplomática e pública com a primeira-ministra alemã Angela Merkel, na semana passada em Berlim, Lula refutou a "autoridade moral" das potências atômicas, até que se desfaçam dessas armas, para exigir que outros não desenvolvam projetos nucleares. A referência foi motivada pelo Irã, mas expressou também, está claro, que o Brasil não teria por que se submeter a políticas internacionais de não proliferação.
Logo em seguida, o ministro de Assuntos Estratégicos e até há pouco secretário-geral das Relações Exteriores, Samuel Pinheiro Guimarães, explicitou a mesma posição por outro ângulo, mais realista: "O não desarmamento dos países nucleares é que leva à proliferação, porque os países que se sentem ameaçados sabem que eventualmente não serão atacados se estiverem armados".
O Plano Nacional de Defesa, elaborado sob a tutela de Mangabeira Unger e Nelson Jobim, e que está por tramitar no Congresso, na sua essência não é muito diferente de uma inábil confissão de país que se sente ameaçado por uma potência hegemônica (sic). Ou seja, entre os que "sabem que eventualmente não serão atacados se estiverem armados" na proliferação atômica.
Não é preciso ser bom entendedor para obter, das duas intervenções, uma síntese da visão que o Brasil tem de si e para si. Mas esse lucro inesperado não é tudo. O outro lado da questão, menos particular e mais fundamental, põe em xeque a equação moral de Lula e a visão pragmática do ministro.
É que, em primeiro lugar, a exigência de fim dos arsenais nucleares e a recusa à proliferação não se excluem, antes ao contrário: são exatamente a mesma concepção e a mesma política. E qualquer dissociação entre essas partes torna-as incoerentes.
Em segundo lugar, quanto mais o sentimento de ameaça justifique a proliferação, mais difícil será o desarmamento, senão impossível. Desde que, ainda longe desta denominação, a geopolítica passou a orientar poderes e rebocar povos, todos os países são potencialmente ameaçados. Mas não precisaríamos chegar a proliferação muito grande para que o planeta fique ainda mais ameaçado do que esteve pelos pequenos hitlers da Guerra Fria e seus "espaços vitais".
Quando a inteligência brasileira atentar para esse tema será tarde. E não falta tanto, não.

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