quarta-feira, dezembro 09, 2009

DAVID KUPFER

Os curtos anos 00


Valor Econômico - 09/12/2009

Em mais alguns dias termina um período fascinante da história da humanidade: os anos 00 do século XXI. Após um início assombrado pelo temor do bug do milênio, uma ameaça crível que não se materializou, e, logo, pelo ataque terrorista às torres gêmeas, uma ameaça não crível que, essa sim, se concretizou, os anos 00 irão se encerrar ainda sob o signo da maior crise econômica experimentado pela humanidade desde a 2ª Guerra.

No Brasil, parafraseando a concepção que Eric Hobsbawm aplicou para o século XX, vivemos os curtos anos 00. Aqui, os anos 00 se iniciaram apenas em 2004 quando, enfim, uma longa sequência de eventos paralisantes se interrompeu: a crise de balanço de pagamentos de 1999, a crise do racionamento de energia de 2001, a crise eleitoral de 2002 e a crise inflacionária de 2003. E terminaram, abruptamente, em fins de 2008, com uma crise internacional de grandes proporções, que contagiou a economia nacional com enorme virulência. Interessante, porém, é que, embora comprimidos em um estreito intervalo de tempo, os curtos anos 00 corresponderam a uma guinada no padrão de desenvolvimento econômico brasileiro sem precedentes na história recente do país. O crescimento econômico recente, ainda que não exuberante, teve o dom de tornar visível novos eixos de mudança estrutural, cujas raízes, embora lançadas há tempos, ainda se encontravam represadas pela letargia da fase anterior. É nesse plano macroestrutural que os curtos anos 00 deixarão sua marca.

Quando foi editada a primeira versão da política industrial do governo, em março de 2004, os diagnósticos enfatizavam os desafios ainda trazidos pelo esgotamento do padrão diversificante da expansão industrial substitutiva de importações. Isso porque com a abertura comercial e financeira do final dos anos 1980 e, especialmente, durante o experimento neoliberal que se plasmou nos anos 1990, o imperativo da competitividade em uma economia macroeconomicamente desorganizada decretou uma nova trajetória industrial na qual predominou um processo de especialização com perda de densidade das cadeias produtivas. Com efeito, desde a estabilização monetária com valorização cambial trazida pelo Plano Real, estava posta sobre a mesa a agenda da necessidade de readensamento da indústria brasileira.

Porém, assim como as reformas do Consenso de Washington, no final dos anos 1980, outras macrotransformações de amplitude comparável encontravam-se igualmente em gestação. No plano interno, esses foram anos da consolidação da democracia no Brasil enquanto que, no plano externo, a globalização financeira, tecnológica e produtiva alcançava mais um patamar, com o desenvolvimento das formas de organização de produção altamente fragmentadas das economias asiáticas emergentes de 2ª geração, a chamada especialização vertical. Do Brasil para dentro, o avanço da democracia trouxe o novo paradigma da universalização, inicialmente, do acesso a direitos constitucionais, depois, às infraestruturas e, finalmente, vinte anos depois, aos mercados de bens e serviços de consumo. Essa é a essência da macrotransformação associada à explosão do consumo de massas associada à atual fase de melhora consistente da distribuição da renda nacional. Do Brasil para fora, o avanço da interpenetração dos sistemas produtivos nacionais fez surgir o igualmente novo paradigma da integração internacional da produção, implicando maior participação do país como origem e destino de trocas de mercadorias, capitais e tecnologias entre as nações.

Embora em uma primeira apreciação, a universalização do acesso aos bens de consumo, pelo que traz de estímulo ao desenvolvimento do mercado interno, possa jogar a favor do adensamento industrial, essa equação não é tão trivial. A pressão que a dinâmica da universalização exerce sobre a produtividade e eficiência da produção doméstica tende a superar a capacidade de resposta do sistema produtivo existente no país, pois torna mandatório que o adensamento industrial não se dê com custos crescentes sob pena de abortar os sempre frágeis ciclos de expansão apoiados apenas no dinamismo do consumo. Ao mesmo tempo, a relação entre as trajetórias de integração internacional e de adensamento também é complexa, de forma que a percepção de que ambas são divergentes pode ser apenas aparente. O problema aqui é a necessidade de incrementar a presença nos sistemas de produção e comercialização mais internacionalizados como forma de assegurar as escalas e o acesso a tecnologias e capitais requeridos pelo próprio aprofundamento da atividade industrial. É da tensão entre as novas agendas da universalização e da integração de um lado e a do adensamento da produção de outro que se nutre o atual nó da política macroeconômica, na qual o impasse sobre a taxa de câmbio é a evidência mais decisiva.

Os curtos anos 00 deixaram claro que, embora constitua um objetivo ainda a ser perseguido em função dos seus impactos altamente positivos na qualificação da estrutura produtiva e do mercado de trabalho, o adensamento das cadeias industriais não é mais suficiente como estratégia de desenvolvimento industrial. Há uma diretriz precedente que é dada pela necessidade de enraizamento dessas atividades industriais. O enraizamento difere do adensamento pela sua natureza menos setorial e mais territorial, isto é, pelos requerimentos em termos de ativos complementares, boa parte deles intangíveis, que exigem investimentos capazes de fixar a produção no local e, a partir daí, dar segurança às empresas fornecedoras e clientes para que venham a se instalar.

A estratégia de enraizamento da indústria no Brasil pode contribuir para trazer soluções que permitam neutralizar os conflitos e potencializar as sinergias entre as trajetórias de universalização, integração e adensamento. Essa agenda, porém, precisa ser politicamente construída e esse poderá ser o desafio da política industrial para os anos 2010. Um governo de qualidade é aquele que enxerga soluções justamente onde os outros veem problemas. Resta esperar que o país consiga atravessar o empedernido ano eleitoral que se avizinha concentrando-se no debate dos temas trazidos pelo futuro e não em debates sobre o passado. É preocupante que o núcleo central do debate político, como mostrado no caso do apagão recente, ainda se organize olhando para trás, em comparações absolutamente inúteis porque destituídas de qualquer rigor factual e inócuas porque se referem a um passado já plenamente superado. Feliz ano velho para todos nós.

PS. Futebol é mesmo imprevisível: por "hexa" ninguém esperava. Saudações rubro-negras.

David Kupfer é professor do Instituto de Economia da UFRJ e coordenador do Grupo de Indústria e Competitividade (GIC-IE/UFRJ. Escreve mensalmente às quartas-feiras. www.ie.ufrj.br/gic E-mail: gic@ie.ufrj.br)

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