sábado, novembro 14, 2009

JUDITH BRITO

Longe do fim da História

O GLOBO - 14/11/09


Francis Fukuyama teorizou sobre a democracia liberal como o fim da história — mas em certos casos a história tem muito a avançar, inclusive para voltar aos trilhos, como em certos países da América Latina. É preocupante, por exemplo, a onda autoritária contra a liberdade de imprensa que ganha corpo. Governos com DNA autoritário mostram sua incompatibilidade com a crítica e a livre circulação de informações e opiniões, voltando-se contra jornalistas, jornais e os meios de comunicação em geral, por meio de leis casuísticas, ações e declarações que visam a encurralar a mídia e jogar contra ela a opinião pública. Superados os anos de chumbo das ditaduras militares latinoamericanas, está claro que ainda levará tempo — entre avanços e retrocessos — para se firmarem nesses países os valores democráticos.

Democracia não é apenas eleição e consulta popular, mas uma cultura permanente de transparência e de convivência tolerante com a crítica, por mais contundente que seja. E a plena liberdade de expressão, a aceitação de opiniões divergentes, sem nenhum tipo de cerceamento, é um de seus fundamentos essenciais. O que vemos hoje, em países como Venezuela, Equador, Bolívia e Argentina, é a negação desses princípios elementares, com os governos usando de retórica populista no seu desprezo pela liberdade e no seu desejo de impor monoliticamente sua visão.

A assembleia semestral da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), recém-encerrada em Buenos Aires, foi mais uma oportunidade para expor o longo rol de exemplos dessa tendência obscurantista e totalitária antiliberdade de imprensa.

A própria Argentina, sede do evento, tem sido vítima de uma agressiva campanha governamental contra os meios de comunicação, incluindo a recente aprovação da Lei de Serviços Audiovisuais, com endereço certo, o grupo “Clarín”, extremamente crítico em relação à administração Kirchner. Um casuísmo gritante, que levou o grupo de mídia a recorrer ao Poder Judiciário.

Não satisfeito, o governo instrumentaliza sindicalistas por ele beneficiados e os estimula a prejudicar os veículos de comunicação que lhe são críticos.

Foi esse o objetivo dos piquetes organizados por caminhoneiros argentinos, bloqueando a distribuição dos jornais “Clarín” e “La Nacion” e da revista “Notícias”.

Não podia ser mais emblemática uma ação que visa a impedir fisicamente a circulação de veículos da mídia impressa.

Na Venezuela, de onde Hugo Chávez dá o tom de tudo o que se tem feito de pior contra a liberdade de imprensa na América Latina, em 2007 foi fechada a mais importante e tradicional rede de televisão do país, a RCTV. Agora, o canal de notícias Globovisión é sufocado por meio de processos e multas, enquanto foram fechadas 34 emissoras de rádio e outras 240 estão ameaçadas de fechamento. Ao mesmo tempo, Chávez incentiva a hostilidade contra os que não rezam por sua cartilha. Relatório apresentado na SIP mostra que, apenas de junho para cá, já ocorreram 107 ataques contra jornalistas e veículos de comunicação, incluindo agressões físicas a paus e pedras. Há dez anos no poder, intolerante a críticas e opiniões diversas, Chávez quer perpetuar-se e também perpetuar sua visão do que deve ser a Venezuela.

No Equador, tramita no Congresso projeto de lei que regulamenta os meios de comunicação, com a criação de um Conselho Nacional de Comunicação, sendo cinco dos seus oito membros designados pelo governo e com poder para fechar jornais e interferir em seus conteúdos. O presidente equatoriano, Rafael Correa, faz da retórica violenta contra jornalistas, a ponto de xingá-los, uma marca dos seus pronunciamentos.

Na Bolívia, o presidente Evo Morales também guerreia crescentemente contra a mídia, cevando um ambiente de tensão que já provocou, apenas neste ano, segundo a SIP, 111 agressões a jornalistas e 36 ataques a veículos de comunicação. Em Honduras, o governo golpista fechou uma emissora de rádio e outra televisão que apoiavam o presidente deposto.

A ditadura em Cuba já é tão antiga que muitas vezes deixamos de lado a implacável repressão contra qualquer voz dissonante que vigora na ilha. Yoani Sánchez, a blogueira do “Generación Y”, é o mais contemporâneo exemplo da pesada mão do autoritarismo castrista.

Impedida de sair do país e com seu blog interditado para os cubanos, foi recentemente detida e agredida por agentes de um governo que mantém atualmente no cárcere 27 jornalistas dissidentes, cujo “crime” foi exercer seu direito à opinião.

No Brasil, felizmente vivemos situação diversa, e o mais preocupante são as seguidas sentenças judiciais impondo censura prévia. Com certeza o recémpublicado acórdão do Supremo Tribunal Federal detalhando os termos do histórico fim da Lei de Imprensa deverá mudar a disposição de alguns juízes que, em afronta à Constituição, têm determinado censura prévia aos meios de comunicação.

A situação privilegiada do Brasil não oculta, no entanto, a percepção de que há, vez por outra, manifestações de certo inconformismo com a essência da liberdade de imprensa, e com o próprio conceito maior da liberdade de expressão.

Para alguns, vale o que disse de forma simples, mas contundente, o ministro Carlos Ayres Britto, do STF, no acórdão sobre o fim da Lei de Imprensa: “Quem quer que seja tem o direito de dizer o que quer que seja.” O “fim da história”, ainda inatingido, mas mais próximo no caso brasileiro, jamais poderá significar o fim da atenção com os princípios democráticos da liberdade de expressão. Esta vigília não acaba nunca. Mas ela será menos árdua quando cada cidadão compreender em profundidade que o pleno acesso à informação e à diversidade de opiniões não é direito apenas dos jornais ou das empresas jornalísticas. Trata-se, acima de tudo, de um direito da sociedade.

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