sábado, novembro 28, 2009

BRASIL S/A

Atoleiro árabe

CORREIO BRAZILIENSE - 28/11/09


Débâcle em Dubai é aviso de que o vírus da crise que pôs o mundo de quatro continua ameaçador


Ao pedir prazo aos credores de US$ 3,5 bilhões em papéis a vencer no dia 14 o cintilante reino de Dubai, uma das sete monarquias dos Emirados Árabes Unidos, expôs que a grande crise do crédito se foi sem ter ido, e há no mundo ainda muito rolo oculto a resolver.

O default seria por seis meses, alcançando os papéis da Nakheel, braço imobiliário do Dubai World, conglomerado que transita entre a estreita fronteira dos negócios públicos e privados num país de regime absolutista como as monarquias árabes em geral. As dívidas do grupo são estimadas, ninguém sabe ao certo, em US$ 59 bilhões, o maior naco do endividamento de US$ 80-100 bilhões de Dubai.

Espécie de uma mega Las Vegas com praia, como define o economista alemão Wolfgang Münchau, Dubai é um dos símbolos da exuberância do mundo no pré-crise. Sem as ondas de dinheiro barato a irrigar os mercados globais, continuaria um areal só atrativo aos camelos.

Ralo em petróleo, ao contrário de seus vizinhos Abu Dhabi, que já acudia suas finanças através de bancos do país, e Catar, rico em gás, Dubai investiu pesado, para fazer a diferença, construindo um ultrahightech centro turístico e financeiro sem igual, destacando-se na opulência duas enormes ilhas artificiais com o formato de palmeira. Já era um negócio bizarro. Em crise, tornou-se anormal.

Extraordinário é que sua atividade empreendedora, movida ao mesmo ritmo do esquema Ponzi que alimentou tantos negócios traiçoeiros, como os fundos de investimentos de escroques nos EUA e Europa, ou feridos de morte, como a General Motors e o Lehman Brothers, ainda atraía investidores à véspera de pedir penico, sinal de que o povo dos mercados financeiros nunca aprende coisa alguma.

Um mês antes de entrar em moratória para os títulos de um de seus três grandes grupos, braços empresariais da família real, o reino captou US$ 1,93 bilhão em bônus islâmicos (baseados na sharia, a lei muçulmana, que proíbe juros, contornada por fórmulas complexas de cálculo dos rendimentos). E havia tomador para US$ 6,3 bilhões.

As análises de banca falharam outra vez. Novamente as agências de rating chegaram atrasadas. A ambição desmedida foi como antes.

Esse foi o sentimento que varreu o mundo: a constatação de que o vírus da especulação que vergou os EUA e empurrou o mundo para a beira do precipício continua intacto. O pânico foi contido graças ao feriado de Thanksgiving nos EUA, na quinta-feira.

A economia de zumbis

Se Dubai está sem caixa, se Abu Dhabi, cujo fundo soberano possui ativos de mais de US$ 1 trilhão, cansou do primo esnobe, tudo isso agora é detalhe para a crônica dos mercados. Importa é apurar se a queda de Dubai foi acidente ou advertência de que há muitos outros podres no circuito global da riqueza criada pelo tal permagrowth — o crescimento permanente, tal como bicicleta que não pode parar.

Ela parou, mas o mundo não entrou em depressão devido à agilidade dos bancos centrais e Tesouros nacionais. Ficaram como sequelas, além do endividamento brutal dos países, que logo apresentará sua fatura aos contribuintes, bancos zumbis e negócios bichados. O FMI (Fundo Monetário Internacional) estima em US$ 1 trilhão os papéis podres ainda encarteirados pelos bancos da Europa e EUA.

Pirâmides valiam mais

O relativo sucesso dos programas de laxismo monetário e fiscal em toda parte mitigou a preocupação sobre a viabilidade das economias nacionais e das empresas projetadas pela riqueza fornida à base do crédito bancário e não-bancário alavancado por dívidas. Dubai é um desses casos: um projeto de nação com renda totalmente dependente de serviços que florescem apenas com a economia global roncando na pista, como o turismo de luxo e a intermediação financeira.

Quis emular Cingapura, a cidade-Estado mais bem sucedida no mundo ao lado de Hong Kong, sem ter uma poderosa indústria de tecnologia de ponta para equilibrar a volatilidade das atividades de serviços — e uma população empreendedora conectada à pátria-mãe, a China.

Advertência da China

E é da China, não só dos EUA, que surgem as maiores preocupações, tão grandes que mais a elite chinesa que os analistas dos países e empresas que dependem de seu apogeu se interessam em perscrutar. O economista Yu Yongding, medalhão da cúpula do Partido Comunista em Pequim, não dourou a pílula em palestra na Austrália, quarta-feira passada. “O padrão de crescimento chinês, dirigido pela exportação e o investimento, não é sustentável”, disse. Esse ajuste está para vir, e chega ao Brasil. Dubai é um suspiro da crise encubada.

Leite de pata azedou

Talvez valha a pena retornar ao início da grande crise, em meados de 2007, e retomar a discussão não de suas causas, mas do que ela implicaria se viesse a se agravar. Quando o pior aconteceu, todos correram para se salvar, os governos entraram em campo, lembrados de que sua ausência aprofundou a depressão da década de 1930, e se pôs de lado a discussão do que só existe se mamado com o leite de pata do crédito farto, barato e permanente. Essa discussão cabe ao Brasil também, onde a crise entrou pela frustração das exportações e a parada dos investimentos. Haverá mercado para mais siderurgia, minérios, petróleo, como supõe o governo? A China tem a palavra...

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